sábado, janeiro 28, 2006

Os Portugueses

O segundo divórcio da minha sobrinha foi recebido com a mesma indiferença carinhosa com que se soube da notícia do seu segundo casamento. Os Homem nunca foram muito dados a escandalizar-se e, salvo erro, a última vez que o velho Doutor Homem (meu pai) enrubesceu de indignação moral ocorreu quando chegaram à casa do Porto, numa revista da época, as fotografias em que o Doutor Salazar olhava, com uma concupiscência sem veneno (o que era pior), as suavíssimas pernas de Christine Garnier. A sua indignação era mais dirigida contra a jornalista do que contra o antigo seminarista; o meu pai nunca compreendeu essa atracção das mulheres pelo homem que queria transformar Portugal num corredor de convento e atribuía o facto à tendência feminina, que ele dizia ser natural, em se deixar seduzir por canalhas e cafajestes.

Uma das minhas irmãs perguntou onde ela se tinha casado. A sobrinha respondeu, com naturalidade, que “no Rio de Janeiro”. “E com um brasileiro?”, voltou ela. “Antes fosse”, murmurou o meu irmão mais velho, pai de Maria Luísa, “mas foi com um português, desses daí.”
A expressão “um português, desses daí” não foi muito comovente, mas dá uma ideia de como as coisas estão hoje em dia. Frequentemente ouço falar “dos portugueses”. Antigamente, eu sabia a quem se referiam – havia uma série de “portugueses” que se poderiam enumerar, de Gonçalo Mendes da Maia a Mouzinho, dos camponeses do Minho aos primeiros colonos do Ilinóis. O tempo tinha descido sobre eles e conferia-lhes aquele halo dos retratos cobertos da poeira que anula as imperfeições e realça as melhores cores. Hoje em dia, isso não tem a menor importância. “Um português, desses daí” significa, realmente, um homem vulgar, capaz de discutir futebol e de identificar as pessoas da televisão. Não há portugueses, propriamente ditos; há uma série de pessoas que vive em Portugal.

Se os meus leitores esperam que eu chore e mencione coisas como “portugueses de antigamente”, eu desiludo-os: acho natural: os “portugueses de antigamente” tinham vícios muito contemporâneos e eram tão velhacos e impertinentes como os de hoje. Por isso, quando ouço falar “dos portugueses” (como na recente campanha eleitoral), duvido bastante das intenções do orador. O que era bom, nas pessoas que vivem em Portugal, era que fossem decentes, que morressem suavemente e vivessem com dignidade. A ideia de sermos “todos portugueses”, que motivou os pequenos ditadores e os presuntivos líderes que arrastaram a glória pelos almanaques, não é uma ideia incontestável e absoluta. Quando as alegrias do futebol ou as conivências da política levam “os portugueses” a pendurar bandeiras nas janelas e a gritar o nome da pátria, isso parece fazer esquecer todas as pequenas misérias, o lixo à beira das estradas ou a maneira como os velhos do meu país morrem abandonados e doentes. Quando as bandeiras se recolhem, as coisas voltam ao que eram. Eu preferia que houvesse menos bandeiras e mais gente a esforçar-se por acordar cedo, por ser razoável ou por aprender as minudências da matemática, essa ciência moderna. Razão porque Portugal precisa menos de portugueses do que de paciência e de aplicação. Quando o meu irmão se referia ao segundo marido da minha sobrinha como “um português, desses daí”, pareceu-me que vi enrubescer o retrato do meu velho avô Homem, administrador de terrenos no Douro e leitor de Guerra Junqueiro. Mas, como as coisas estão, é preferível que falemos de pessoas do que de pátrias. Isto, dito por um Homem, tem o seu peso. O leitor não sabe, mas ao pé disto o segundo divórcio da minha sobrinha é uma minudência sem qualquer interesse. Assim vai a moral.

in Revista Notícias Sábado - 28 Janeiro 2006

sábado, janeiro 21, 2006

Um divórcio inesperado

Na família nunca se apreciaram muito as colecções de memórias. Depreendo que existam duas razões. Em primeiro lugar porque as nossas nem sempre merecem aplauso ou recordação (portámo-nos mal com Paiva Couceiro, a quem a família recomendou que se vestisse melhor e se deixasse de lérias). Em segundo lugar porque, depois de o infante D. Manuel ter abandonado as penedias da Ericeira enquanto em Lisboa se anunciava a República pelo telégrafo, a família aceitou tornar-se liberal. O senhor Dom Miguel, cujo retrato se conserva pendurado ao fundo de um corredor da velha casa de Ponte de Lima, daria saltos na tumba.

Quando se dobra o caminho que nos levou aos oitenta e quatro anos, aparece uma grande clareira na floresta. A ideia de “clareira na floresta” é excessiva e resulta de abundância de leituras, mas não vejo outra mais apropriada para falar das minhas próprias recordações, sobretudo agora que os pinhais de Moledo enfrentam o rigor do Inverno. Mudado há mais de vinte anos para esta casa, limito-me a viver entre recordações, almoços de domingo com a família que vem visitar este Matusalém minhoto, as pequenas histórias dos meus sobrinhos e as notícias que me chegam do mundo, servidas pelos jornais que Dona Elaine, governanta de Moledo, traz diariamente da papelaria ou do café da vila. Os meus irmãos, ao domingo, repousando (mas não totalmente) dos negócios que os prendem ao Porto, ao mundo da finança e às amizades que sobreviveram, têm pouco tempo para recordações. Apenas o segundo divórcio da minha sobrinha veio interromper a pacatez a que os Homem se têm dedicado sem pudor. Mesmo assim, não ligámos. Era o segundo divórcio.

Soubemos tardiamente que tinha casado segunda vez. Soube-o em São Miguel de Seide, na visita que anualmente me leva à Casa de Camilo, o velho bruxo, para olhar os mesmos objectos de sempre: o relógio de Pinheiro Alves, primeiro marido de Ana Plácido, a escadaria onde se ouviu o disparo do revólver com que Camilo se suicidou, as velhas árvores que o escritor amou. É à minha sobrinha que cabe transportar-me a essa peregrinação anual que acaba, invariavelmente, em Ponte de Lima, entre os freixos e o sol do Verão. “O tio sabe que me casei?” Não sabia, mas não foi “Doze Casamentos Felizes” o livro de Camilo que me veio à memória.

Antigamente, os casamentos eram preparados com antecedência e discutidos com minúcia. Observei sempre esse protocolo nos casamentos dos outros. Por vários motivos, nunca me casei – as “alegrias do matrimónio”, como são conhecidos os vários incidentes que depois decorrem, nunca me encontraram pelo caminho. A minha sobrinha acha graça a este comportamento imoral e diz-me que, imitando-a, devia passar a votar no Bloco de Esquerda. Tentei, em vão, explicar-lhe que o massacre das classes médias, o combate ao casamento e à bonomia familiar, é uma tentação antiga e velhaca de séculos. Ninguém como o velho Doutor Homem (meu pai) compreendeu essa banalidade, explicando ocasionalmente aos seus quatro filhos homens (as minhas irmãs eram poupadas às filosofias do antigo boémio) que a vida eram apenas dois dias. Todos o compreendemos, e eu menos do que os outros, como de costume. Aliás, tirando a velha Tia Benedita, que até ao fim acreditou que o espírito de Afonso Costa regressaria para expulsar os missionários franciscanos, perseguir as pessoas de bem e roubar o ouro de Santa Maria de Oliveira (em Guimarães), a família percebera que se tinha mudado, enfim, em liberal.
Isso é uma coisa, expliquei à minha sobrinha. Outra, diferente, é votar no Dr. Louçã. Ela não concorda. Foi para isto que foi educada na vida moderna.

in Revista Notícias Sábado - 21 Janeiro 2006

sábado, janeiro 14, 2006

Começar pelo fim

Dobrei já aquilo que se chama a idade do século. O mundo não tem para mim, hoje, passados oitenta e quatro anos, menos segredos do que quando o senhor general Craveiro Lopes foi apeado da Presidência. Há quem pense que a idade é uma vantagem. Seguramente não é. Com o tempo vamos ficando maduros e tranquilos; mas com a idade vamos apenas reparando nos defeitos dos outros e quase nunca nos nossos. Reparo que os meus sobrinhos espremem a pasta dentífrica pelo meio e não pela base. Dou-me conta das mudanças de estação quando os pinhais de Moledo mudam de cor. A velocidade das coisas não me interessa, há muito que me conformei com a sua passagem e a ideia, vulgar e triste, de que há coisas novas para experimentar.

Sou um conservador, um botânico e um velho. Até como botânico sou conservador, reservando sempre o mesmo espaço para as begónias – que me lembram Júlio Diniz e “Uma Família Inglesa” – e o mesmo enlevo para os hibiscos. A velha casa de Moledo, onde a família passa os domingos e, episodicamente, os finais de semana, não acolhe memórias de um século; alberga apenas a poeira de oitenta e quatro anos assinalados, religiosamente, em Dezembro de cada ano e anunciados à família como um avanço na conservação da espécie. Tenho uma biblioteca razoável, mantida sem esforço e sem ordem. Aprendi com o velho doutor Homem (meu pai), que a abundância de livros não deve fazer-nos pensar na sabedoria mas apenas na vaidade e no prazer. Não na alegria (que raramente se retira deles); antes, no prazer que se retira do silêncio, da contemplação e da pequena vaidade.

Aos oitenta e quatro anos devia interessar-me pelas doenças do meu corpo, já que pouco me
interessei pelas do meu país. Aliás, com o tempo e com a idade, simultaneamente, o meu país ficou reduzido ao Minho e ao velho Porto de que recordo amigos desaparecidos, ruas antigas, perfumes de antanho. Gosto de palavras antigas. A minha sobrinha Luísa, alimenta a minha imoderada vaidade literária, feita de clássicos, de romances baratos e de repetições. Também gosto de repetições. Gosto de lugares onde me sento sempre da mesma maneira, de urzes que mantêm a mesma cor, de livros que não mudaram de estante e de bandas de música que tocam marchas incompreensíveis e desafinadas. Hoje, sou um rural. As pessoas razoáveis do meu país, em vez de viverem e envelhecerem tranquilamente no campo, ficaram nas cidades, rodeados de médicos e de novidades como a televisão, a internet e as eleições.

O meu avô e o velho doutor Homem, meu pai, legaram-me uma ideia de felicidade doméstica que já não existe e que eu, o mais velho de seis irmãos e irmãs, devia saber explicar. Mas não sei, essa é a verdade. Era uma felicidade feita de repetições, de moderação e de pouco engenho, contentando-se com o facto de haver Inverno e de, mais tarde, poder haver Verão. A minha família atravessou os séculos e as convulsões adaptando-se ligeiramente aos factos consumados e tratando a História como um incómodo que era preciso suportar. Fomos miguelistas e mudámos de campo. Fomos indiferentes à República e achámos insuportável o doutor Salazar. A última das revoluções, em 1974, já não nos surpreendeu porque na altura tínhamos aprendido a falar no “curso da História” e no fim dos tempos. Houve uma altura em que me senti vagamente contrariado com o país. Não hoje. Sou apenas um velho homem do Minho, um pouco reaccionário, habituado ao mar de Moledo, à superfície das coisas, às memórias que não se podem mudar, como ter começado estas crónicas pelo fim. Pelos meus oitenta e quatro anos.

in Revista Notícias Sábado - 14 Janeiro 2006

quinta-feira, janeiro 12, 2006

Em certos aspectos

António Sousa Homem nasceu no Porto em Março de 1920 e vive actualmente em Moledo. Advogado de profissão, é autor de um livro de botânica e de um roteiro do Minho Litoral, ainda inéditos. Em 2002 editou o seu primeiro livro ("Os ricos andam tolos" - Edições ASA), que reunia, reescritas, algumas das crónicas que escreveu para o semanário O Independente. A partir do dia 14 de Janeiro de 2006 volta a publicar as suas crónicas, desta feita na Revista Notícias Sábado (parte integrante do Jornal de Notícias e Diário de Notícias aos Sábados).

Em certos aspectos é um blogue onde serão publicadas, na integra, todas as novas crónicas de António Sousa Homem. O Blogue não é da autoria de António Sousa Homem, tendo sido no entanto devidamente autorizado pelo autor.