sábado, fevereiro 25, 2006

À espera do iodo

Os derradeiros dias de Fevereiro nem são simpáticos nem antipáticos – é apenas o Entrudo. Essa constatação devia deixar-me prostrado porque geralmente chove durante o Entrudo, e há uma ventania gelada, como se fosse uma espécie de castigo pela própria natureza da época. As sociedades civilizadas têm períodos assim, desregrados e não especialmente agradáveis, em que as multidões entram em desvario e festejam por obrigação. Como um Matusalém minhoto, que é essa a minha categoria, já não me recordo sobre o que se festeja no Entrudo, a que hoje se chama Carnaval.

O velho doutor Homem, meu pai, fechava-se em casa para não ser testemunha de cortejos de foliões e dessa fealdade fria que ameaçava Fevereiro com o seu rasto inclemente de canções brasileiras e de partidinhas entre vizinhos ou desconhecidos. Nesses dias, recolhia-se à biblioteca e deixava que os filhos se comportassem como selvagens. O que seria para ele um descanso óbvio, uma prova de que “o mundo é como é”, acabava por não acontecer – a maioria de nós, creio que por motivos inscritos na genética, não se dispunha a ceder ao barbarismo. Foi nessa altura da minha adolescência que, num Verão de circunstância, a casa de Moledo passou a fazer parte dos nossos roteiros familiares.

Os meus irmãos insistem no facto de eu não ter atravessado a adolescência (uma vez que teria passado da primeira infância à idade adulta e ao escritório onde trabalhei durante cinquenta e cinco anos), mas reconhecem a importância da casa de Moledo para a nossa existência colectiva. De certa maneira, ela era uma alternativa ao velho casarão de Ponte de Lima, onde se tinham acumulado as memórias dos vários ramos dos Homem, juntamente com as peças da Companhia das Índias pertencentes outrora à tia Benedita e os enxovais desperdiçados em vários casamentos intra muros. Se em Ponte de Lima se comemorava o Verão mais afastado do bulício, entre as montanhas e o rio, escorrendo pelos velhos freixos e choupos do jardim, Moledo era a apoteose do iodo.

Nessa altura, e creio que até há coisa de vinte anos, murmurava-se muito sobre o iodo. O velho doutor Homem, meu pai, insistia que o melhor iodo era o do Estoril ou o de Biarritz, onde havia menos probabilidade de encontrar o seu país, cheio de reumatismo, doenças pulmonares, asma ou bronquites crónicas. O iodo era o remédio universal, como hoje são as pílulas para dormir ou o futebol ao fim-de-semana. Moledo enchia-se, então, de famílias cobertas de mantas e cobertores discretos, recebendo, nas manhãs de Verão, a ainda mais discreta bênção do iodo, aspirando pelas narinas aquela consolação feita de sargaço, água salgada, areia suja de algas e a visão dos rochedos e da Ínsua. Antes da abertura do Verão, que tinha data marcada e não era esta época desordenada que vai de Maio a Outubro, havia a preparação para o iodo: passeios ao sol, ao longo a praia, entre os pinhais, em bandos de gente saudável. Poupo o leitor a essa descrição de retratos de época. Basta imaginar.

Com o tempo descobriu-se que o iodo tinha os seus problemas. Os Homem das novas gerações preferiram-lhe o sol e o bronzeado. Já que me tinha faltado a oportunidade e a fé para contrair um casamento e seguir as pisadas da família inteira (que tem multiplicado casamentos com notável eficácia e entusiasmo), dediquei-me a ser um tio deplorável, alimentando nos meus sobrinhos a ideia de que o mar é um contributo inegável para a nossa saúde. Eu fui saudável durante muitos anos, de facto. Devo-o, estou hoje convencido, ao mar. Não ao mar que hoje se procura e se oferece nas Caraíbas e nas antigas províncias de África, mas ao mar rijo, frio e ondulado de Moledo. Mantenho com o iodo uma relação afectuosa: ambos sabemos que nenhum de nós existe verdadeiramente. Eu limito-me a esperar que passe o Entrudo e a sua vaga de frio para que a praia fique apetecível para as tardes da Páscoa; o iodo aguarda a legião de narinas despertas para aquela saudável aspersão de odores salgados. Somos apenas isso: duas velharias esperando uma pela outra. Na semana anterior, a praia (e os bares que a servem de clientela) encheu-se de gente em passeio. Vislumbrei nesse quadro aquele apetite ancestral pelo iodo e o combate permanente ao reumatismo. Nestas circunstâncias, o velho doutor Homem (meu pai) murmurava sobre como devia estar formoso o mar de Biarritz. Era um romântico incurável que nunca percebeu que Moledo era, na verdade, o centro do mundo.

in Revista Notícias Sábado - 25 Fevereiro 2006

sábado, fevereiro 18, 2006

Três temas essenciais

O velho doutor Homem (meu pai), que era um português avisado, pediu-me algumas vezes para não discutir três coisas com o meu avô, administrador de quintas do Douro e historiador, por conta própria, dos caminhos-de-ferro Portugueses: religião, a Convenção de Évora Monte e os atrasos no comboio rápido entre Campanha e Barca d'Alva. Se bem que nem as quintas do Douro nem os caminhos-de-ferro fossem coisas suas, ele cuidava de ambas com profissionalismo e pundonor inexplicáveis para os dias de hoje. Nunca quis comprar uma quinta para si (embora pudesse e creio que há, no atabalhoado espólio da casa de Ponte de Lima, uma carta de Guerra Junqueiro mencionando o assunto) e nunca publicou sequer uma pequena monografia sobre a ferrovia nacional. Essa paisagem de antanho, pobre, cheia de homens humildes e rescendendo a flor de giesta e a mosto maduro, sempre o cativou.

Como se diz hoje em dia, tinha uma paixão pelo Douro. Todos o compreendíamos desde que não nos incomodasse muito com a descrição das obras nos vinhedos, com os números da colheita da amêndoa ou com observações acerca do azeite e das suas virtudes. Éramos tolerantes. Acerca dos comboios, eu compreendo a obsessão: varias vezes o fomos esperar a São Bento, recolhendo-o de mais uma viagem às profundezas de Mogadouro ou as falésias do Pinhão ou do Vesúvio, emergindo do interior de carruagens cheias de pó e de cestos do almoço; o comboio era, portanto, uma parte da sua peregrinação mensal às quintas onde apreciava os ciprestes, as vinhas, as cristaleiras das casas, a comida desse tempo, o vinho fino com biscoitos e a conversa com os ingleses que resistiam ao calor, ao frio e à desordem geral do clima. Ele não compreendia os ingleses, de resto, ao contrário do meu pai. Onde o meu avo via a teimosia inexplicável de umas famílias que teimavam em viver no Pinhão ou a beira do Varosa ou do Sabor - onde não acontecia nada de verdadeiramente civilizado, tirando a caça e a epistolografia -, o meu pai descortinava uma biblioteca sorvida em silêncio e a fuga ao mundo do doutor Salazar, que, segundo o meu avô, também era culpado dos atrasos do comboio rápido que raramente o depositava com segurança em Barca d'Alva. A falta de cumprimento dos horários na ferrovia era assunto de melindre.

Quanto às outras coisas, explicam-se. Os Homem guardaram algum ressentimento em relação ao general Azevedo Lemos, que em 1834 assinou pelo exercito do senhor D. Miguel a Convenção de Évora Monte; sem razão alguma, como sabiam, mas cientes de que as famílias deviam manter injustiças sagradas, teimosas e invioláveis. De qualquer modo, por mais de um século que nenhum Homem entrou em Évora e, quando um de nós o fez pela primeira vez (um tio-avô de Vila Nova de Cerveira que, enviuvado, casou com uma senhora do Alvito), certamente que procedeu a uma ligeira genuflexão. Isso aconteceu nos anos sessenta, já o regime tinha autorizado fotografias das augustas e suavíssimas pernas de Christine Gamier (outra obsessão familiar).

Em matéria de religião, e tirando a orto­doxia da tia Benedita - que ia contra o tom geral de decadência do nosso miguelismo -, os Homem respeitavam a preguiça teológica dos seus membros, desde que logo no inicio da Quaresma, pela Páscoa e pelo Natal houvesse sinal da nossa existência como uma família do Velho Porto e do vetusto Minho aos quais pertencíamos - nós, os tapetes e as peças da Companhia das Índias. No entanto, nesse ambiente de alegre emburguesamento, o velho doutor Homem (meu pai) nunca permitiu que alguém metesse o nariz na sua biblioteca, nas assinaturas da imprensa inglesa (que, semanalmente, chegava ao escritório ou a casa) ou na ideia de que o mundo tem um princípio ou um fim. Essa era a sua liberdade e nem Ihe chamava um valor, mas uma condição. Se os 'ayatollahs' quisessem puni-lo, a ele, que achava a religião uma coisa pessoal, como um passaporte ou um único verso de toda a poesia de Yeats, encontrá-lo-iam sentado, à espera, mas do lado de dentro da porta. Ele sabia o que era a liberdade. Sabia o que era o lado de dentro da porta.

in Revista Notícias Sábado - 18 Fevereiro 2006

sábado, fevereiro 11, 2006

A um Deus desconhecido

Que eu saiba, os assuntos que versam matéria religiosa foram sempre vetados pelos Homem. A tia-avó Benedita acreditava que o espírito do doutor Afonso Costa havia de regressar, da Beira ou de Paris, para expulsar os missionários franciscanos ou para roubar o ouro dos paços episcopais e dos conventos. Nos últimos jantares de Natal e almoços de Páscoa com que se pontuavam os ciclos de vida da família, a matriarca erguia o dedo para lembrar os horrores da República, da Maçonaria e dos carbonários. A religião da tia Benedita, bem vistas as coisas, era o resultado de uma estranha devoção ao senhor Cardeal Cerejeira, de uma tradição reaccionária que o ramo mais miguelista da família (o maioritário, de resto) mantinha com serenidade, e de uma necessidade de metafísica que se manifestava em datas exactas e precisas – o nascimento de Cristo, a Quaresma, o ciclo do Advento – ou em circunstâncias flutuantes – a exigência de limites. Ela não conhecia Dostoievsky, mas administrava o terror com generosidade. Para ela, Francisco Xavier era um santo e os “doutores da lei” deviam ser uma excrescência.

Eu e os meus cinco irmãos e irmãs recebemos uma educação religiosa que fazia prever o que aí vinha: os Homem a transformarem-se em “tolerantes”. O velho doutor Homem (meu pai) compreendeu a tempo que não havia vida decente sem religião, temor e uma biblioteca duvidosa; tratou de educar-nos, de forma evidentemente desigual, no respeito pela religião, no temor das catástrofes e no amor pelos livros. A ele cabia esse divertimento; ao ramo feminino era atribuído tudo o resto, que ia da educação fundamental à vistoria das mãos lavadas (com sabonete Confiança) antes de nos sentarmos à mesa. Daí resultou que alguns de nós se perderam na contemplação do jazz (sobretudo de Coleman Hawkings and the Trumpet Kings) e das cantoras líricas mais atrevidas durante as saudosas tardes de Verão na velha casa de Ponte de Lima, enquanto outros optaram pela carreira dos negócios e pelo voto no professor Cavaco. As duas coisas não são incompatíveis, mas o desenho é este. O leitor, habituado a ver o mundo dividido entre bons e maus, há-de compreender melhor assim.

De modo que a religião era, tal como as férias, o pudim do Abade de Priscos e a literatura romântica, servida com parcimónia e a cada um segundo as suas necessidades. É verdade que houve, a partir de certa altura, uma tendência anticlerical na nossa família, sobretudo quando os velhos padres do Minho foram sendo substituídos por seminaristas formados depois da invenção da pílula e da abertura de escolas para ambos os sexos. O velho doutor Homem (meu pai) não é desse tempo; sobreviveu-lhe e passou ao lado, depois de uma vida inteira dedicada à família, à leitura da imprensa e à catalogação da biblioteca. No velho Porto de antanho, a torre dos Clérigos ou os sinos da Sé faziam parte da paisagem como o velho edifício de “O Comércio do Porto” e a mesa que o doutor Pedro Homem de Mello ocupava na A Brasileira – mas não eram matéria religiosa. A nossa casa era visitada por dois cónegos do Cabido que traziam guarda-chuvas no braço e que riam à mesa com apetite e alegria – mas também eles não eram matéria religiosa, que ficava com cada um. Há nisso uma recordação fugaz que o leitor compreenderia melhor se pudesse consultar a lista dos inquiridos pelo Santo Ofício e procurasse o patronímico dos Homem. Lá estará. Mas nem isso impediu o velho doutor Homem (meu pai), ou os seus antepassados, de tolerar a velha Igreja. São coisas passadas.

Não sei o que pensaria a Tia Benedita dos desenhos que o jornal dinamarquês publicou sobre o profeta Maomé, mas certamente seria tolerante. Ela estava em guerra permanente pela Terra Santa, o que era um despropósito. Mas não toleraria anedotas mais velhas do que Gil Vicente sobre o comportamento dos frades e o humor dos bons santos. Ela nunca acreditou que São Tomás de Aquino era um gastrónomo e que Santa Teresa de Ávila andou à beira da perdição. À sua maneira era uma santa que viveu em santidade. Ela apreciaria os mullahs, não fossem as barbas.

in Revista Notícias Sábado - 11 Fevereiro 2006

sábado, fevereiro 04, 2006

As contrariedades da mudança

Uma das discussões periódicas na velha casa de Moledo, com uma repetição quase mensal nos últimos tempos, acontece quando as minhas duas irmãs decidem cuidar da decoração dos aposentos do Matusalém. Eu sou o Matusalém e uma delas adverte-me: «Não julgue que queremos mandar na sua casa, António. Mas isto precisa de mudança.»

Eu sei. Ninguém de bom senso se atreve a mandar nesta casa. Na verdade, quem manda nesta casa é Dona Elaine, a governanta que há vinte anos cuida da despensa, da cozinha e das férias de Verão deste eremitério (de Julho a Setembro a casa é invadida por hordas de rapazes e raparigas de que lembro vagamente o nome, mas que vêm com os meus sobrinhos). Filha de emigrantes portugueses que fizeram a vida no Rio de Janeiro, Dona Elaine voltou viúva para o Minho com dinheiro suficiente para comprar os seus cordões de ouro e reconstruir uma casinha no centro da aldeia, nos arredores de Vila Nova Cerveira. Cansada ou apenas ligeiramente fatigada da vida, aceitou trabalhar cá em casa. Desde então passei a ter uma vida disciplinada, cordata e agasalhada onde nunca faltaram a água mineral de Melgaço nem os medicamentos tomados a horas.

As minhas ocupações em casa são, por isso, reduzidas à biblioteca, ao jardim e ao depósito de velharias em que se transformou o escritório, onde se armazenam álbuns de família, recortes de jornais, correspondência dos bancos e declarações de impostos que o meu contabilista de Vila Praia de Âncora se encarrega com uma regularidade anual e displicente.
As minhas irmãs, que são expeditas em matéria de decoração doméstica, já me mencionaram inclusive o “feng shui” que me parece ser uma ciência exacta que determina a arrumação de vasos de bonsai. Elas insistem em que eu devo mudar a decoração da casa. Eu tremo só de pensar no assunto. Em primeiro lugar, a ideia da mudança de decoração; em segundo lugar, na sugestão de que devo ser eu a mudá-la. Elas raramente entram na biblioteca e por isso não sabem: as suas estantes ainda conservam hábitos clássicos de catalogação herdados do velho doutor Homem (meu pai), mantendo Disraeli ao pé de Yeats e Camilo afastado de Garrett (já em tempos expliquei não a resistência mas a aversão dos Homem por Garrett). Esta ideia de entrar pelas salas dentro e mudar a posição dos móveis, a luz dos candeeiros e os cortinados do escritório, não é nova e continua a não trazer novidade. Uma das ideias mais maçadoras da espécie é o apego à mudança. A “mudança” é um vício que se propagou com determinação, como um vírus sem remédio.

Tenho a ideia, certamente ainda improvável, de que a insistência na “mudança” corresponde ao sentimento mais conservador de hoje em dia. Não há ninguém que não queira uma “mudança”. Os políticos querem “mudança”, as minhas irmãs exigem-na com afecto, os eleitores são atraídos por ela como as multidões pela catástrofe. Não há político com ideias mais ou menos sensatas que, a certa altura, não acorde com o cérebro invadido por essa palavra ameaçadora: “mudança”. Ora, num país onde toda a gente quer mudança, seria bom pensarmos nas razões por que não se deve mudar. Mas não se espere isso de um pobre homem do Minho que encontrou há muitos anos um sistema de arrumação dos seus livros e dos vasos da varanda, e não vê motivos para entregar essa geometria, certamente caótica, à ciência da arrumação. Há coisas que, mudadas, ficam irremediavelmente perdidas.

Este apego à “mudança”, hoje em dia, devia preocupar os psicólogos. Uma das minhas sobrinhas confessou que não consegue passar uma semana sem consultar o seu; ela chama-lhe, antes, “analista”, e sabe do que fala: desde que encontrou a salvação, não quer mudança que lhe atrapalhe a vida ou lhe revele mais contrariedades. Eu sorrio, vagamente: as novas gerações vão ficando mais reaccionárias. Compreendo-as bem quando resisto à vontade de mudança decretada pelas minhas irmãs.

in Revista Notícias Sábado - 4 Fevereiro 2006