sábado, março 25, 2006

A velhice, eterna

Não sei o que me acontecerá daqui a um ano. Digo isto há mais de vinte anos, quando atravessei a já então velha ponte sobre o rio Minho e me dirigi a Moledo sabendo que se tratava da estrada que, daí em diante, me levaria a casa onde passaria os anos que marcariam a minha velhice. Desde então vivo em Moledo e não me arrependo. Tirando o paraíso da Bíblia, com os seus vários rios, a sua natureza intocada, não conheço outro lugar tão propício à tranquilidade, sendo que o território dos nos­sos ancestrais Adão e Eva era, na verdade, muito mais aborrecido. Aqui, pelo menos, há uma praia que se tornou famosa, há vento, chuva, agulhas dos pinhais, e até o ruído das motorizadas e às vezes agradável. Por isso, não sei o que me acontecerá daqui a um ano, depois de atravessar os oitenta e cinco, que é já o limite de baptismo de qualquer Matusalém que se preze.

Não lamento a idade avançada, nem a forma como acompanhei ou desacompanhei o mundo. É certo que noto mais a simpatia dos outros. Noto a condescendência e agradeço quando aguardam que me erga da cadeira nos restaurantes. Tambem noto mais a inclemência ou a suavidade das estações. Sobre isso, não me lamento. A vida foi-me simpática e percebo que o facto possa parecer uma injustiça em determinados momentos. O que ela me deu em tranquilidade, disciplina e bem-estar, retirou-me em aventura, insensatez e em paixões que não vivi. Não lamento. Vi essas coisas nos livros e conheço a sensação, por interpostas pessoas. Há um preço a pagar por tudo e eu já nasci praticamente com idade para me aposentar. Também noto que, de semana a semana, estas cronicas são recebidas na revista como um milagre que surpreende a espécie humana e a subverte nos seus princípios. Quando Dona Elaine se atrasou a enviar estas folhas por fax, há duas ou três semanas, o dr. Camacho telefonou de Lisboa, inquieto e em sobressalto, a perguntar pela minha saúde - suponho que antevendo uma pequena catástrofe nas coronárias. Descansei-o e desiludi-o: nesta idade já não há coronárias, apenas uma máquina desactualizada que funciona com achaques periódicos e sem garantia de fabrico. Às vezes recebo cartas simpáticas dos meus conterrâneos, felicitando-me pela insistência, pela idade, pela teimosia e por aquilo que dizem ser a minha coragem.

Esse é um mito que se sobrepõe ao da idade - que não nos traz coragem, mas alguma indiferença que às vezes se confunde com resignação. De facto, somos mais felizes com a vida completa; nada nos impede de ter ocupações ridículas e de dizer frases sem sentido. Os velhos vivem noutro mundo, atravessado por bandas de música que ainda tocam o Hino da Carta e por recordações fugazes, diálogos com as casas vazias, com os pinhais sujos de polén quase invisível, com os médicos e com os mortos. Somos desculpados e aceitam os nossos enganos (de datas, de nomes e de lugares). Também é verdade que sabemos quando encolhem os ombros e apenas somos desculpados pelas inconveniências.

A grande sabedoria - repetia o velho doutor Homem (meu pai) nos seus piores momentos — está em não ficar demasiado descontente com o mundo. Sabemos que não é perfeito, ele, o mundo; e não é ao dobrar os oitenta e cinco anos que ele se encaminha para a cura ou para a reparação dassuas avarias essenciais. Esta resignação é um grande remédio para o reumatismo e para os achaques de ocasião, para a recordação dos amores de antanho, para a memória das coisas impossíveis ou simplesmente para se ocupar o tempo com a medicina mais apropriada, a paciência. Aos sessenta anos, convencido pelas circunstâncias, li as páginas de Seneca sobre a velhice e comovi-me parcialmente. Decidi desde essa altura que não iria ter mais cerimónias. A vida é como é. Renasce-se a qualquer hora, a qualquer instante, por qualquer motivo. O que nos leva ao ditado português mais absurdo e mais comovente: as coisas são como são. Nenhuma outra frase nos define tao bem.

in Revista Notícias Sábado - 25 Março 2006

sábado, março 18, 2006

A idade das viagens

O velho doutor Homem, meu pai, não foi à Primeira Guerra e a Segunda não lhe dizia respeito. No entanto, especializou-se em estratégia militar e divulgou bastante o uso de mapas da Europa dentro das paredes da velha casa da família, naquilo que então era a Baixa do Porto. Havia mapas de toda a espécie, mas grande parte deles vinha de Inglaterra. Sobre eles se debruçavam os dois, meu pai e meu avô, para explicar à família onde ficava o Marne ou qual o percurso dos aviões alemães que entravam em solo britânico para bombardear Londres. De qualquer modo, a palavra "blitz" não entrou logo no nosso dicionário, e os nomes de então eram ligeiramente aportuguesados. Nesses tempos em que Oxford era Oxónia e Cambridge passava por ser Cambrígia, os mapas eram um bem precioso, irregular e ligeiramente inútil, porque ninguém precisava de mapas para poder guiar-se por eles. Simplesmente, porque ninguém viajava.

A primeira vez que um mapa foi disputado pelos membros da família ocorreu nessa viagem distante e tormentosa, quando o doutor Homem, meu pai, decidiu que Biarritz era melhor do que Leça ou que Nice estava muito para lá do Tamariz. Isso aconteceu depois da Guerra e mesmo assim foi difícil convencer-nos de que aquele complexo de montanhas, declives, desertos, planícies rasuradas e aldeias pobres, era Espanha. Nem Calatayud nem Talavera de La Reyna vinham assinaladas no único mapa peninsular do nosso pequeno e familiar arquivo cartográfico (Calatayud por causa de uma canção ligeira que foi famosa na altura), e passar em Toledo implicava um enorme gasto de energia útil para que ouvíssemos uma oração de sapiência acerca de El Greco.

Mesmo assim, viajar com o doutor Homem, meu pai, era uma oportunidade vistosa para entrar em hotéis onde tratavam como família um grupo de desordeiros portugueses, e para conhecer restaurantes famosos numa época em que não havia Guia Michelin, mas nos era exigida compostura e pedida abertura de espírito. Por esta ordem, exactamente – porque não havia abertura de espírito possível sem a educação para conhecer o sabor dos espargos franceses. Outros tempos.

Com o tempo, viajar tornou-se mais apetecível, e sem ter de atravessar as "aduanas" e aquele desfile de carabineiros coroados pelo tricórnio da Guardia Civil espanhola. Lembro-me da chegada ao Rio de Janeiro, na época de Juscelino Kubitschek, quando Copacabana era uma galeria de actrizes e de gente famosa e bastante morena. Da primeira de várias visitas a Paris, com a família saindo em fila indiana de um hotel. E dos mármores vistosos de Santa Maria Novella, em Florença, na altura em que eu vesti o meu primeiro fato à Marcello Mastroianni.

A minha sobrinha ri-se bastante destas memórias e pergunta-me se eu me lembro de Maria Callas. Para ela, eu sou um repositório dos tempos do Titanic, como se tivesse encalhado nas areias de Moledo para minha glória pessoal. Da biblioteca à enumeração de caos em que se foi transformando a minha memória, ela crê encontrar material para paleontologia. "Vamos então fazer uma viagem?", perguntou ela na semana passada. Eu ri-me. A minha idade só me permite deslocações a Viana do Castelo para ver e ser visto pelo médico (que é um optimista sem cura), e a Vila Nova de Cerveira para ver as colinas de Santa Tecla. À medida que o tempo passa e a memória se dilui, prefiro de verdade a praça central de Cerveira (ou de Caminha) a deambular pela época em que os Campos Elíseos eram uma imagem de luxo e de sonho. E fomos até Vila Nova de Cerveira em peregrinação, no carro que precisava de reconhecer a velha estrada do meu Minho ribeirinho, de passar por Caminha e de chegar a Cerveira. Agora há auto-estradas modernas que furam as montanhas que ficam por arder. Algumas delas conservam aquele verde intenso que reanima o final do Inverno e me anuncia que o mundo continua. Não era preciso ter vindo a Cerveira para descobrir que existe a outra margem do rio, mas a verdade é que facilita muito. São coisas de velho, o que não abona muito a favor da minha sobrinha. Ela só lê estas crónicas ao domingo. Ainda terei um dia inteiro para me preparar.

in Revista Notícias Sábado -18 Março 2006

sábado, março 11, 2006

A chuva no mar do Minho

Chove sempre que se aproxima o anúncio da Primavera. O leitor sabe que eu não sou romântico, o que se pode levar na conta de deformação literária. Os Homem nunca tiveram uma cartilha para comandar o destino das suas leituras, mas foram suficientemente cuidadosos no que diz respeito às interdições – para que não se desse por elas. Por exemplo, Garrett. São raros os exemplares de Garrett na biblioteca. Há uma questão de gosto, em redor da sua poesia (que é fraca), reconheço, mas os vetustíssimos Homem do século XIX não ligavam muito a literatura e limitaram-se a nunca desculpar o lugar que o antigo aluno do seminário de Angra (onde o tio bispo lhe cedeu alguns autores clássicos) ocupou na vida política de depois da guerra (a que terminou em Evoramonte). Casmurros, sim, e miguelistas, mas não inconsequentes ou relapsos com os setembristas. Eu lamentei essa frieza porque sempre achei as “Viagens” um livro aparentemente razoável, embora em tradução tardia de Sterne, o do “Tristram Shandy”, que inaugurou os tempos modernos cerca de duzentos anos antes de eles chegarem aos salões.

O velho doutor Homem, meu pai, abandonou vários livros a meio argumentando que, não podendo ler uma tradução decente do “Tristram Shandy”, não iria perder o seu tempo com imitações. Ele era, à sua maneira, reconheço, um excêntrico. Não satisfeito com o facto de ter espalhado a fama da sua excentricidade ao longo da vida, conseguiu também impô-la a todos nós, o que o poupou a bastantes dissabores e a alguns incómodos, como ter que assistir a peças de teatro nas noites frias do seu velho Porto, ser assediado para encontros literários ou, mais prosaicamente, acompanhar a educação sentimental dos seus descendentes.

Foi por esse motivo que me lembrei da chuva, que sempre considerei um truque romântico de efeito fácil. A evocação das gotas de chuva caindo sobre as ruas, da sua melancolia portuense e ribeirinha, das tonalidades de cinzento envolvendo as árvores (que já não existem) do Campo de 24 de Agosto, da passagem do vento entre os becos – qualquer romancista usa esses artifícios, e qualquer romântico, dos incorrigíveis aos lamentáveis, gosta de evocações depressivas. O leitor dos livros de Dona Agustina raramente encontrará essa chuva nas suas páginas, pardacenta e caindo com estilo. A chuva é a chuva; trata-se de uma questão que apenas diz respeito à limpeza das ruas, à meteorologia e às hortas.

A verdade é que fico assim quando chegam os primeiros alvores da Primavera. Há um brilho do mar à beira de Moledo. A crónica da província é feita de coisas insignificantes e de memórias das estações do ano, do ruído das motorizadas no final da tarde de domingo. Para entender esta desinteressante monotonia é preciso compreender como a província ficou abandonada. Reparo nisso quando regresso dos cumes de Santa Tecla, onde vamos uma vez por ano, depois de almoçar em Cerveira e de conferir que o rio segue o mesmo curso de sempre. Naquelas colinas que se afundam no mar do meu Minho vejo despontar a primeira luz verdadeira da temporada. Antigamente costumava vê-la nas mimosas que cresciam à beira da estrada de Viana ou nas ruínas de uma certa casa de Afife, onde se instalara um tio que emigrara e viera rico do Pernambuco. Também ele era um romântico e um liberal. Na sua modesta e cívica educação literária, afeiçoada a muitos anos de maçonaria do Pernambuco, cabiam todos os lugares-comuns que a alma humana era capaz de engendrar. Republicano como era, o tio da ala esquerda da família acreditava que a poesia, como a literatura em geral, tinha como missão contribuir para a melhoria do carácter dos seus leitores. O pobre homem acreditava que Guerra Junqueiro era um poeta de génio e tentou várias vezes recitar-nos “O Melro” para nos incutir virtudes gramaticais ou para nos educar um gosto literário triturado por muito cepticismo e versos em línguas estrangeiras. Todos nós sabíamos que a literatura não tinha nada a ver com as virtudes cívicas. Tal como o sentimento não tem a ver com as condições meteorológicas. É por isso que chove de vez em quando, anunciando a Primavera.

in Revista Notícias Sábado -11 Março 2006

sábado, março 04, 2006

Retratos e jardins

Escrevi com lápis durante muitos anos. Ainda guardo alguns, afiados, desiguais e gastos pelo tempo e por papel sofrível. As coisas simples como os lápis comovem-me e divertem-me, porque desconheço como se perpetuaram na minha memória e na espécie de armazém em que se foi transformando a biblioteca - onde, além dos livros que fui juntando e escolhendo com egoísmo e dos que herdei do velho doutor Homem (meu pai), se foram acumulando coisas inúteis e desvalorizadas com a idade. Na verdade, como me sugeriu um dos meus irmãos, a transformação da biblioteca da casa de Moledo numa espécie de museu pessoal deve-se, antes de mais, ao medo. O medo, ao contrario do que se pensa, é um bem precioso e inalienável e eu devo-lhe parte da minha memória. Não fosse o medo de perder a memória e não teria reunido fotografias, documentos das conservatórias, cartas, malas de viagem, sabonetes Ach Britto, mapas, exemplares inúteis de 'O Minho Pittoresco' e uma boa cópia da 'Corografia Portugueza' do Padre Carvalho da Costa ou o 'Diccionario Chorographico' de Américo Costa.

Não tenho razoes especiais para conservar a memória, evidentemente, mas ver-me privado dela é também ver-me privado do meu mundo ou, pelo menos, daquilo que pereceu nos últimos trinta anos - na verdade, são uma e a mesma coisa. O meu mundo desapareceu nestas três últimas décadas. Nao o lamente o leitor: bem vistas as coisas, esse mundo não tem grande utilidade. Era um mundo onde a pasta dentífrica se espremia pelo fundo do tubo e onde os jornais não tinham erros nas secções de palavras cruzadas. O resto, a política, a bondade ou a crueldade dos homens, a vaidade ou a riqueza, o prazer ou o sofrimento são menos do que acontecimentos; a única coisa que aprendemos é que precisamos de alguma inteligência para não nos zangarmos com o mundo.

De vez em quando, por isso, recolho-me à minha ocupação prin­cipal, a de jardineiro. A minha sobrinha Maria Luísa entende que sou um botânico amador e que devia publicar os meus apontamentos sobre as plantas que conservo em redor da casa. Ela não distingue hibiscos, begónias, japoneiras, magnólias, miosótis ou simples flores das giestas amarelas, mas entende que há um mistério na actividade do botânico e tem-me como um deles. Não sou. Limito-me a anotar o crescimento das plantas e a proibir Dona Elaine (que considera que todas as árvores com flores são camélias ou mimosas), a governanta da casa, de cortar ramos de flores antes do tempo. Algumas delas lembram-lhe o Brasil, de onde veio viúva e remediada, e dão-lhe a fugaz impressão de, quando chega o Verão, estar a dois passos dos trópicos. A minha irmã mais nova, que é também a mais moderna de todos nós, pensa que eu devia aprender alguma coisa de 'feng shui' para que o pobre jardim, protegido pelas altas agulhas dos pinheiros, não Ihe pareça uma selva organizada por um bárbaro. Foi uma grande luta até eu aprender o significado exacto de 'feng shui', uma ciência delicada e oriental que acha que existem energias próprias na arrumação dos objectos domésticos.

Com a minha idade, as artes decorativas são um mistério e a casa de Moledo não suportaria que Ihe mudassem os móveis, as plantas do jardim e da varanda ou os vasos da entrada: são algumas décadas de vícios e de memória. Os Homem são pouco corajosos quando se trata de fazer mudanças.Só assim se explica que ao fundo do grande corredor do casarão de Ponte de Lima, onde os Homem assinalam a sua existência e contam o número dos vivos durante um almoço anual (em Agosto), permaneça, inamovível, uma copia do velho retrato do senhor Dom Miguel. O velho doutor Homem (meu pai) nunca permitiu que se Ihe mudasse o lugar, nem quando veio a democracia. Argumentou que, daquele lugar, o príncipe podia ver melhor os teixos e chorões no meio da relva. Quando um de nós murmurou qualquer coisa sobre os novos tempos da política, limitou-se a dizer que nenhum eventual hóspede saberia dizer se o retrato era do senhor Dom Miguel, de um antepassado austríaco ou de um bibliotecário de Coimbra. Como sempre, ele tinha razão.

in Revista Notícias Sábado - 4 Março 2006