sábado, maio 27, 2006

A virtude da derrota

O retrato do senhor D. Miguel, que melancolica­mente jaz na parede de um corredor do velho casarão de Ponte de Lima, já integra parte da chamada mobília dos Homem. A Tia Benedita achava que era uma das peças principais, mas a pobre senhora nunca deu a entender a gente de fora que se tratava de uma cópia - excelente, no entanto - do original (de Giovanni Ender) que o leitor e a leitora conhecem dos livros de estampas para identificar o príncipe derrotado. Em atenção à idade da matriarca ninguém lhe referiu o pormenor, que para ela seria cer­tamente sem importância, embora eu suspeite de que conhecia toda a história do quadro, muito mais luminoso do que o de João Baptista Ribeiro, e que se pode visitar no Museu Soares dos Reis. Simplesmente, a senhora fazia-se apenas desentendida. Essa era, aliás, uma das características da Tia Benedita: fazer-se desentendida.

Na nossa sociedade democrática isso seria impossí­vel, mas a senhora ficara a viver num mundo anterior ao 'fox-strot', e não valia a pena chamá-la a qualquer tipo de razão. Pensar (e dizer), até 1940, que havia perigo de o dr. Afonso Costa regressar para expulsar os padres e confiscar as igrejas era um absurdo até para crentes na vida depois na morte - mas fazia-lhe bem, mantendo-a desperta para o mundo da política, geralmente inacessível às mulheres da sua idade. Do mal o menos, comentava o velho doutor Homem, meu pai, que sempre fora o preferido da Tia Benedita e a quem ela legou a totalidade das peças da Companhia das índias. O velho advogado dizia, na sua ingenuidade, que a República era boa para atemorizar velhinhas, se bem que a desordem cronológica da senhora o assustasse.

A minha sobrinha Maria Luísa, que vive em Braga, a cidade que várias vezes aclamou D. Miguel e por muitos anos aguardou o seu regresso (anunciado por frades, generais sem exército e profetas aluci­nados de aldeias minhotas), acha pitoresco que a família conserve o retraio do príncipe naquele lugar de destaque e várias vezes perguntou se não era melhor mandar restaurá-lo e entregá-lo a um museu. A hipótese não é despropositada nem original, mas os Homem sempre gostaram de velharias — e das suas velharias muito mais. Consegui demovê-la da ideia quando lhe garanti que existe uma gravura do rosto do príncipe, de Franz Stöber, feita na Áustria a partir do original - e que Stöber é o interessante pintor do funeral de Beethoven. Esta associação salvou o retrato de Ponte de Lima. Ora, os caracóis do príncipe (visíveis no quadro ítalo-austríaco, mas diluídos na representação pátria), mais do que as suas diabruras e heroísmos, são património da família por motivos inex­plicáveis até hoje.

Os livros de história pátria não deixaram de festejar os vencedores e os heróis do Mindelo, do cerco do Porto, de Angra e do teatro romântico. Portugal está cheio de derrotados que raramente mere­ceram atenção diante da hagiografia dos vencedores. Da desco­nhecida Dona Teresa, mãe do nosso primeiro rei, aos fidalgos que desafiaram o magnífico D. João II e por isso foram supliciados, pas­sando pelos assassinos de Inês de Castro, por D. Leonor Teles e pelo seu conde, ou pelos vícios bonacheirões do nosso trono — há por certo, aí algumas injustiças no juízo dos nossos contemporâ­neos, habituados ao heroísmo das vitórias e à queima de arquivos. Ora, de alguma maneira, o retrato de D. Miguel lembra-nos a virtude da derrota.

O velho doutor Homem, meu pai, assegurava que ninguém no seu perfeito juízo sabia mais do que três ou quatro fra­ses do discurso justificativo de José Acúrsio das Neves em defesa do príncipe, e que provavelmente isso não teria importância porque as opções do passado não podem alterar-se dois séculos depois. O facto é que os homens não fortalecem o seu carácter colocando--se sempre do lado dos vencedores. Há uma estranha serenidade que só se adquire nas derrotas e, algumas vezes, na reclusão que deve suceder às humilhações. O nosso mundo não se compadece com esta filosofia despropositada - quer vencedores e, podendo, faz deles vencedores absolutos.

Por isso, quando enfrento o velho retra­to da casa de Ponte de Lima, iluminado pela penumbra do Verão, fil­trada pêlos freixos e pelas cortinas da família, penso que o mundo está bem feito. Não muito bem feito. Mas razoavelmente bem feito.

in Revista Notícias Sábado – 27 Maio 2006

sábado, maio 20, 2006

O Verão chega devagar

A vida mudava todos os anos, quando começava a época bal­near, eufemismo usado na velha casa de Moledo para assinalar um levíssimo aumento das temperaturas ao aproximar-se o São João. A data era, na verdade, um marco no nosso calendário familiar e coincidia com uma série de actividades nem sempre olhadas com benevolência pelos autóctones. A minha irmã protestou durante muito tempo pelo facto de eu me referir à população local como "os autóctones". Ela supunha que o termo era desagradável ou trans­portava significados humilhantes. Tive de explicar, pacientemente, que "autóctone" se referia, com dignidade, aos naturais e habitantes da terra - pelo menos antes de mim, uma vez que, com o tempo, me tornei um "autóctone" sem quezílias de natureza linguística ou ligeiramente atormentado por elas.

Para afirmar que se tratava de uma época como qualquer outra, e para que isso ficasse claro, Dona Elaine, a governanta que desde há anos assegura a sobrevivência da casa, recusava-se a partici­par de "reuniões desnecessárias", como ela chamava aos períodos de café e conhaque depois dos almoços de domingo, durante a Primavera de Moledo. O que Dona Elaine pretendia demonstrar ao que restava daquela família de desordeiros e devoradores bem ali­mentados é que o almoxarifado era assunto seu, fosse qual fosse a estação do ano, estivessem ou não ocupados os quartos da casa.

Na verdade, eu entendo-a bem. Habituada há cerca de vinte anos a lidar com esta família que a viu envelhecer mais um pouco, a anti­ga emigrante brasileira (regressou do lado de lá como herdeira de um tio instalado no Rio) encolhia os ombros e seguia em frente. Ela sabe que o Verão é um mundo à parte durante o qual a natureza age por sua conta e risco, de acordo com leis imutáveis. O que acontece ao eremitério de Moledo durante o Verão é ser invadido por uma legião de sobrinhos que se encarrega de introduzir alguma indisciplina no refúgio do Matusalém da família. Essa legião cresceu consideravelmente e eu aprendo bastante durante a tem­porada, sobretudo sobre o mundo que nos espera. Como estou a salvo, por questões meramente biológicas, de frequentar esse universo, limito-me a sugerir que não participarei, com eles, em cerimónias rituais para fumar haxixe ou entrar nas águas do mar de Moledo - assunto sobre o qual já falei na semana anterior. As minhas irmãs insistem em que eu devo ser poupado a esse festim estival; os meus irmãos não opinam; a minha sobrinha mais velha, Maria Luísa, informa que de Braga (onde vive) até Moledo "é um salto" e que pretende ocupar o seu quarto habitual durante os quinze dias em que assaltará a biblioteca; eu tomo nota da evolução da família, como se fosse discípulo de Darwin.

Quando ainda não se tinha inventado o iodo para justificar tempo­radas de praia, o velho doutor Homem, meu pai, retirava-se para a velha casa de Ponte de Lima, arrastando consigo a família e uma considerável quantidade de malas transportadas do Porto em duas via­gens. Mas ele era um "moderno", reconheço hoje. Num mundo que ainda não tinha descoberto os telemóveis ou a Internet, mas que ouvia rádio e se preparava para, um dia, ver televisão, as temporadas de Ponte de Lima significavam o que passaram depois a ser os retiros espirituais ou os spas (aprendi a palavra com a mais nova das minhas irmãs) da actualidade. Não éramos melhores do que os meus sobrinhos. Reconheço, claro, que a espécie registou, desde então, mudanças substanciais: ficou mais barulhenta, está mais despenteada e sofre mais de asma, por exemplo.

Os meus sobrinhos tentam esclarecer-me, mostrando-me que há outras coisas, como a velocidade a que as coisas aconte­cem ou o acesso às grandes bibliotecas através do computador. Aí, eu entendo a lição de Dona Elaine e, para não ser indelicado, limito-me a concordar com a dose anual de condescendência, como se reconhecesse a derrota. Devo dizer que um deles, o Eduardo, menciona a questão das bibliotecas para agradar ao que ele suspeita ser uma mania de um tio velho que recomenda romances fora de moda para leituras no Verão. Ele não suspeita de que, quando estou em dificuldades de bibliografia, recorro ao excelente dr. Barreto Nunes, da biblioteca de Braga, que tem uma memória muito mais jovem e muito melhor do que a minha. O Verão transforma-me num aprendiz, de ano para ano. O sol anima-me.

in Revista Notícias Sábado - 20 Maio 2006

sábado, maio 13, 2006

O cosmopolita de Moledo

O leitor deve supor que a minha memória já foi melhor. Com a idade vamos esquecendo afrontas e memórias da felici­dade passageira. A primeira viagem a Lisboa, no entanto, per­manece no conjunto das minhas recordações - nocturna, demo­rada, com uma luz amarelada no vagão-restaurante onde o velho doutor Homem, meu pai, me levou pela mão para tomar lugar à mesa. Lembro, também, uma extraordinária sucessão de pai­sagens que passa pela minha retina como uma provação para me recordar a idade e o próprio esquecimento (uma vez que não recordo os nomes a que correspondem essas imagens, o que não me angustia grandemente).

A minha sobrinha acha que eu devia escrever sobre as minhas viagens; ela está convencida de que sou um cosmopolita desde que lhe falei do encontro com um séquito de actrizes americanas no Copacabana Palace durante os anos de Juscelino Kubitscheck, naquele breve faiscar de civi­lização que tomou conta do Brasil durante os anos cinquenta. Mas encontrar jovens damas no hotel dos hotéis da época, em pleno Rio de Janeiro, era fácil de mais. O doutor Salazar, que se interessava bastante pela vida alheia, não gostava dos diplomatas que lhe falavam do Brasil, que ele supunha ser a terra do pecado, cheia de solicitações e de vícios. De certa maneira, o ditador tinha razão, mas a sua avaliação era diferente da minha, tendo em conta que o pecado raramente me fez voltar a cabeça na direcção do passado.

Seja como for, não sou e nunca fui um cosmopolita. Desconheço a grandiosidade e o brilho dos grandes lugares do mundo, e nunca trocaria a minha língua por outra - sou, pois, um velho mi­nhoto que teve o seu tempo na época em que Portugal era uma enorme província cuja capital, durante o Verão, foi sempre Moledo. Ao longo dos anos, os meus irmãos foram abandonando esse hábito, certamente prejudicial para o reumatismo, de frequentar a vetusta praia de Moledo, e eu compreendo-os. Fazem-no por hábito e porque julgam que viajar é uma espécie de dis­ciplina física que substitui o conhecimento das coisas. Por isso, regressam da Argentina, como de Paris ou da Tailândia com a impressão de arrastarem consigo um novo diploma, adquirido depois de uma provação de quinze dias dedicados a conhecerem o mundo e a relerem dele o essencial.

De qualquer modo, as praias de águas frias são um privilégio das classes abastadas, que se podem dar ao luxo de sofrer as agruras do mar do Minho; a generalidade das pessoas procura estações balneares mais amenas e onde existe aquilo a que dão o nome de turismo. Os velhos podem dar-se ao luxo de esperar que, nas ma­nhãs de Moledo, o nevoeiro levante e o céu se ilumine; não têm pressa nem guardam uma finalidade. E, tirando os velhos, apenas os mais jovens, que desconhecem a importância de acordar cedo.

Desde há muitos anos que, por várias razões (a pequena utilidade da vida, por exemplo) deixei de "fazer serão". O velho doutor Homem, meu pai, apreciava os serões naquele mundo em que o jantar de família era ser­vido, quase pontualmente, às sete e meia da tarde. Do jantar até à hora de deitar decorriam três horas destina­das à leitura dos jornais ingleses que chegavam ao velho escritório da baixa, à tarefa de organizar e reorga­nizar permanentemente a sua biblio­teca (que herdei intacta e ordenada), excepto duas noites por semana - em que jogava cartas ou jantava fora com Dona Ester, minha mãe.

Ele tinha pena de não ter vivido em Oxford. Não porque gostas­se de ter sido um académico, mas para poder recordar as noites em que teria folheado o Telegraph e bebido xerez. Os jornais ingleses substituíam esse desejo não cumprido. Impedido de discutir questões de política doméstica, tornou-se cosmopolita para poder comentar a herança de Disraeli ou de Churchill na vida dos conservadores britânicos. Era uma substituição, real­mente, como todo o cosmopolitismo. A minha sobrinha julga que é uma finalidade em si mesma. Se assim fosse, a praia de Moledo já teria desaparecido, engolida pelo mar, inútil e desprezada. E continua ali. Sinto-me um cosmopolita feliz em Moledo.

in Revista Notícias Sábado – 13 Maio 2006

sábado, maio 06, 2006

O luxo da História

ANNA MOFFO - o velho doutor Homem, meu pai, apreciava Anna Moffo, mais do que a Callas, e creio que isso se devia a uma tendência definitiva para embirrar e que se apoderou dele durante a década de sessenta. Ao ver chegado o crepúsculo da vida, esse período em que se é permitido ou tolerado, o velho advogado entendeu que poderia recompensar-se a si mesmo de muitos anos de tolerância avulsa dedicada a compreender os desvarios dos outros. Aturou alguns, quer por boa educação quer por falta de paciência para entrar em disputas sobre o sen­tido da vida. Porém, o que alguns confundiam com bonomia e concordância, era apenas a manifestação, sei-o hoje, de uma certa altivez do seu feitio. Na verdade, não estava para aquilo.

Num mundo que começava a ficar dividido entre esquerdas e direitas, e no qual as esquerdas eram apoteóticas e as direitas estavam apoplécticas, o velho doutor Homem, meu pai, decidiu gozar a vida. A esta distância, vejo que foi um homem sensato. Não foram cativantes, por assim dizer, os anos sessenta. Para quem não precisou de esperar trinta anos para decidir que o doutor Salazar servia para capelão mas não para acompanhar as vicissitudes do mundo, os anos sessenta não foram nem uma novidade nem uma contrariedade. Estava escrito que seriam assim e que teriam de existir períodos semelhantes. A pátria era um lugar sereno e familiar, cheio de gente modesta maltratada sem o saber.

O velho doutor Homem, meu pai, que conhecera a boémia em Paris e tratara de negócios em Londres - tudo antes da Guerra -, sabia que exis­tia um mundo para lá de Vilar Formoso e, com toda a certeza, para além de Biarritz. Ele experimentara-o com a volúpia do andarilho embevecido e a moderação dos homens de bem. Ou seja, com a cautela dos portuguesinhos. O seu luxo cosmopolita, que até aí fora pago pela bolsa paterna, passou, depois do casamento e do nascimento dos filhos, a ser uma espécie de sublevação e revolta contra o país onde, des­graçadamente, uma sardinha no pão era considerada um meridiano aceitável. Arrastando consigo uma família de crianças turbulentas que invadia hotéis balneares com a graciosidade de zés-pereiras, ele sempre acreditou que as viagens, o conhecimento do mundo, o domínio seguro de mapas de estradas e a prática de línguas estrangeiras eram portas que forneciam, necessariamente, ilustração capaz de nos afastar da pequenez da pátria. Não que ele a renegasse. Mas embirrava bastante com ela e com o doutor Salazar. E essa era uma sensação que tomava conta do velho doutor Homem, meu pai, ao reentrar em Portugal depois de percorrer centenas de quilómetros pelas miseráveis estradas espanholas.

Os anos sessenta não foram, pois, uma grande novidade. Estava escrito que seriam assim. A educação liberal, o cinema e a generosidade dos cos­tumes, longe de produzirem uma geração interessada em reformar a pátria e em civilizar a política, fabricaram grupos de rapazes de mau feitio e jovens senhoras desejosas de degradação e de liberdade. Se o desejo de degradação é compreen­sível e até justificável, e o de liber­dade ainda mais, já a formação de gente de mau feito me parece questão de carácter. Num país que não desconhecia as prisões políti­cas, que marcaram a nossa história, os rapazes revolucionários dos finais dos anos sessenta apresen­tavam uma determinação sacer­dotal invejável, cheia de rigores marxistas e de disciplina militante. De modo que o doutor Homem, meu pai, decidiu gozar a vida.

Para isso necessitou de uma dose substan­cial de paciência. Vendo o caminho que as coisas tomavam, e prevendo revoluções e catástrofes (que, de qualquer modo, só se realizaram pela metade), o velho advogado suportou com estoicismo as ilusões dos outros, sorrindo afavelmente para os excessos cometidos e a cometer. "Filosofemos", pedia um derrotado político nas páginas do 'Eusébio Macário', de Camilo. Quer dizer: "Mudemos ao sabor da corrente - e inventemos uma explicação." Ele nunca precisou de evitar esses escolhos. Sobrevivendo largos meses ao 25 de Abril, recordo a sua resposta quando lhe vieram dizer que as colónias iriam tornar-se independentes e o império desfazer-se em poeira: "O senhor D. Pedro já começou o trabalho há muito, no Ipiranga." Um velho conservador nunca se surpreende com a história.

in Revista Notícias Sábado – 6 Maio 2006