sábado, setembro 30, 2006

Os mistérios da pedagogia

Não há muitas razões para se ser assim. Os histo­riadores e os sociólogos (no meu tempo não havia sociólogos, e a sociologia é uma ciência dos anos optimistas, como me explicou a minha sobrinha) explicariam a minha preguiça, a minha velhice relativamente confortável, até as minhas ideias sobre a desorga­nização do mundo. No entanto, tenho a impressão de que alguma coisa falharia. Só a vaidade justifica que nunca nos sintamos satisfeitos com as explicações acerca do nosso carácter, que em tempos julgámos ser uma coisa relativamente privada.

As minhas irmãs acham-me uma figura parecida com a solidão do Santuário de São Bento da Porta Aberta – elas entendem que me faltou uma mulher, como Adão precisou de Eva para conhecer o pecado. Uma mulher tornearia a minha preguiça e evitaria que se acumulassem tantos livros na biblioteca; teria tido filhos, netos, preocupações, ferramentas na garagem, 'bricolage' e, suponho, não acharia indispensáveis os almoços de domingo, esse hábito que raramente admite uma falta nas famílias de antanho. O velho doutor Homem, meu pai, criou-o entre os seus, suponho que para recolher informações acerca de todos nós e na primeira pessoa, sentados à mesa da casa do Porto.

A esta distância, penso que o velho causídico se preocupou bas­tante com a família, mas não exagerou. Ele sabia que o melhor remédio para manter firmes esses laços naturais era um certo desinteresse, fingido ou não, mas praticado. Acompanhava os nossos estudos sem se intrometer – aguardava os resultados, punia com seriedade, festejava sem euforia, prometia recompen­sas modestas. Não conhecia os pedagogos nem a pedagogia, outra das novas ciências sucedâneas da puericultura, e tratou-nos, a todos e sem excepção, como se Rousseau não tivesse existido: pequenos adultos que fugiam da barbárie e se civilizavam à medida que iam deixando de causar incómodos. O resto resu­mia-se a minudências que se resol­viam com simplicidade. Acreditava que lhe bastava mostrar-se e fazer perguntas. O método resultou. Sei pouco do assunto; limito-me e limitei-me a observar o modo como os meus sobrinhos foram crescendo até se mostrarem úteis para uma conversa com predicado, sujeito e complemento directo.

As minhas irmãs e as minhas cunhadas comentavam assuntos desses, mas a idade e o tempo têm uma vantagem superlativa sobre todas as outras formas de interromper um tema desagradável: tornam-no desnecessário e ultrapassado. Depois de educados os filhos, sobrevêm os casamentos, os netos e os divórcios. Actualmente, parece haver uma idade em que agridem profes­sores e se iniciam na desobediência activa. Atribuem a calami­dade às escolas, onde conhecem o risco em vez da obrigação do trabalho, mas a verdade é que há outras razões – falta de maneiras à mesa, deficiências nas hierarquias e a ideia de que o mundo tem um centro que é ocupado pelos "jovens", vasta­mente confundidos com pequenos.

Pelos padrões de hoje, o velho doutor Homem, meu pai, seria considerado um pai frio e distante. Sempre julguei que a distância era uma das suas muitas virtudes, que todos nós aproveitámos, evitando-nos embaraços e concedendo-nos mais liberdade. Hoje em dia apela-se bastante "ao diálogo"; na minha ignorância sobre estas coisas, sempre pensei que falta­va um pouco de ordem e de almoços de domingo. Falar sobre quê? Naturalmente, creio eu, sobre as dificuldades da existên­cia e os seus mistérios. O "diálogo" parece ser um remédio constante para todos os males, mas trata-se apenas de uma variação. No fundo, depois de abolida a "conversa à mesa", o "diálogo" substituiu-a como uma espécie de parlamento em que todos valem o mesmo e em que se fala para fazer valer os argumentos de cada um. Neste capítulo, o velho doutor Homem, meu pai, considerava que um pouco de injustiça for­mava o carácter e amaciava o tom de voz. Não era o segredo para uma educação perfeita (eu sou o resultado provável dos seus erros), mas vivíamos num mundo onde ainda não tinham nascido Mary Quant nem o ié-ié. Depois da psicanálise, da invenção da "juventude" e da pedagogia, o mundo é muito mais esclarecido sobre os profundos abismos da alma. Mas isso é uma coisa; outra coisa, inteiramente diferente, é admitir que essa alma ainda vale alguma coisa.

in Revista Notícias Sábado – 30 Setembro 2006

sábado, setembro 23, 2006

A insónia

Quando era jovem não tinha insónias. Atribuo o facto à minha vida desinteressante distribuída pelo escritório, pelo cumprimento dos deveres profissionais e pelas amizades da época. As minhas irmãs, que sempre me olharam com a curiosidade que se deveria devotar a uma espécie rara, e que nesse papel tentaram depois substituir Dona Ester (minha mãe), acrescentam a falta de preocupações familiares e a ausência de uma mulher que castigasse a leviandade do meu carácter. Em seu entender, uma esposa deveria proporcionar-me um nível adequado de preocupações de modo a economizar no sono e a manter-me acordado quando o corpo me ordenasse que dormisse. Admito que seja assim, mas não quero menosprezar o velho hábito de beber café de cevada – uma das tradições do Porto – e de manter a rotina de jogar brídge em dias certos da semana.

Esses horários e hábitos que traduzem, em linhas gerais, uma vida cheia de mediocridade e de acontecimentos pouco apaixonantes, valeram-me outras coisas a que não é normal atribuirmos valor – como não ter insónias. Infelizmente, hoje acompanho os meus sobrinhos (mas em lugares diferentes) na prática de vigílias que irrompem noite dentro. Os velhos dormem menos. Os meus sobrinhos, cruzando os trinta, também. Acompanho essas insónias quase juvenis à distância, com interesse, mas sem a veneração dos idólatras. Há, nas pessoas que não sofrem de insónia, uma disciplina que os transforma em exemplares do Paleolítico: na maior parte dos casos usam pijama, têm uma hora certa para cumprir certas tarefas, espremem o tubo da pasta de dentes pelo fundo, tentam ocupar o mesmo lugar à mesa. Padecem, evidentemente, de defeitos incomportáveis – mas levantam-se, em geral, mais cedo.
O velho Doutor Homem, meu pai, era um madrugador impenitente e dormia seis a sete horas por dia, raramente cabeceando a meio de uma partida de brídge, nas noites de sexta e de sábado, ou durante o obrigatório serão doméstico. O segredo, explicou várias vezes, residia na quantidade de livros aborrecidos que se esforçava por ler e na disciplina que essa leitura requeria. Nunca levei a sério a justificação, evidentemente, até ter descoberto certos romances publicados depois de 1950.

“O senhor doutor”, conferiu certo dia Dona Elaine, a governanta de Moledo, “é muito arrumadinho.” Ela olhava em volta do quarto e da biblioteca (designação obtusa que conservo para o armazém de livros onde juntei os milhares de exemplares que tinham pertencido ao velho Doutor Homem, meu pai, à lista de curiosidades literárias e outras velharias que fui reunindo) e tenho de concordar que se trata de uma característica irritante, “ser arrumadinho”. Confesso que faltou sempre, à biblioteca ou ao quarto, aquele ar romântico e displicente onde cabem um livro no chão, um maço de jornais amontoados, um tom de vida vivida e ligeiramente desarrumada. Nunca tive esse talento nem a centelha de génio e de criatividade que viessem pôr em desacordo a forma como conjuguei os lugares da minha vida e a recordação deles. Tendo deixado de fumar aos cinquenta e cinco anos (ao contrário do meu pai, que entrou na derradeira década da sua vida temendo pelo desaparecimento abrupto dos cigarros “Paris”), até esse elemento de distúrbio deixou de cumprir a sua função no organismo, tal como certo catarro romântico e de “ancien régime”.

Passei a ter insónias só depois dessa época, quando me preparei para os achaques da minha idade madura e definitiva, trocando a leviandade do carácter por alguns (excessivos) cuidados recomendados pelo meu médico de Viana do Castelo, que acompanha as minhas coronárias desde que me mudei para Moledo.

A minha sobrinha Maria Luísa vem com os dois filhos passar fins-de-semana entre os pinhais e a praia de Moledo, e considera que esta casa “a deixa dormir”. Na verdade acho que isso se deve ao facto de Dona Elaine se deitar cedo e acordar cedo, o que significa que o pequeno-almoço está preparado na mesa da cozinha. A governanta, naturalmente, acha que um espírito tranquilo favorece um sono tranquilo. Ela tem razão. Aqui, a minha sobrinha, que em Braga vota no Bloco de Esquerda, sente-se protegida do desvario e tem sonos pesados, longos, outonais, conservadores. Por essa ordem de ideias, as minhas insónias devem-se a um desvio político que desconheço.

in Revista Notícias Sábado – 23 Setembro 2006

sábado, setembro 16, 2006

O crespúsculo de Moledo

Os carros ficam estacionados perto dos pinhais e, lentamente, a partir das cinco ou seis da tarde, debandam para a estrada principal ou, agora, para a auto-estrada que segue para o Porto; em Setembro isso significa o fim da "época balnear". Para o temperamento de um minhoto, o domingo à tarde é um final de romaria, uma despedida cheia de camisas brancas arregaçadas e de sapatos ligeiramente cobertos de pó. Lembro-me dos homens de colete, sentados nos muros, sinalizando o domingo que acaba em Cerveira, em Ponte de Lima, nos Arcos.

Moledo, no entanto, não tem nada de rural. Moledo significa mar. E, portanto, é justíssima a expressão "época balnear". A partir desta semana, na verdade, encerra-se o plano meteorológico do Verão mesmo que o calor persista e a vinda das chuvas seja con­siderada uma bênção. Dona Elaine acha que as chuvas nesta altura são um perigo para as videiras e as vindimas, mas o meu almanaque precisa delas depois de outro Verão inclemente. Passada a temporada do iodo, como eu chamo à época em que os areais são invadidos por famílias bronzeadas e adolescentes ginasticados, Moledo agradece uma chuva que limpe os pinhais e faça assentar a poeira.

Estas observações acontecem-me todos os anos, mas têm algu­ma inocência. Às vezes, a meteorologia parece-me um milagre – uma espécie de acontecimento que prova que o universo está ou completamente desordenado ou bem feito. O velho doutor Homem, meu pai, que era um homem sensato, acreditava que o universo estava bem feito – eu limitei-me a aceitar essa evidência como se aceitam as trovoadas repentinas de Verão ou as derradeiras geadas de Março. Na cabeça dos velhos, a meteo­rologia é a única ciência cuja utilidade não precisa de ser demonstrada, juntamente com a cardiologia e a "clínica geral".

Tudo o resto pode acontecer com ou sem regularidade, com ou sem justificação. Por mim, tendo em conta a minha tradicional incapacidade de estabelecer contactos com os semelhantes, a meteorologia é um assunto recorrente; os portugueses apreciam-na e diariamente prestam-Ihe as mais doces homenagens.

Na polémica política sobre evolu­cionismo e criacionismo, por exem­plo, mantenho-me nas margens do mais irredutível cepticismo: ignoro como chegámos aqui. Isto, assegura-me a minha sobrinha Maria Luísa, constitui uma ameaça à imagem que os meus timoratos leitores têm do mais reaccionário dos cronistas de Moledo. Ela, que vota no Bloco de Esquerda porque tem simpatias pelo ar evangelizador do dr. Louçã, acredita que o mundo está dividido entre a velha e a nova ordem e que não há razões para duvidar dessa geometria. Os Homem, pelo con­trário, habituaram-se a duvidar – daí provém não só o seu cepti­cismo e mesmo o seu pessimismo, mas, também, e em maior grau, a sua hipocrisia permissiva cheia de toques misantropos. Explica-se facilmente o fenómeno: uma coisa é duvidar intimamente; outra, menos pacífica, é manifestar as nossas dúvidas com a serenidade de um trovão (cá vêm os fenómenos meteo­rológicos). Ter uma dúvida não significa expô-la, e ao longo dos últimos sessenta anos tenho abundantes páginas do calendário semeadas de dúvidas exangues, de questões com a verdade, de problemas de fé – mas daí não se infere que a dúvida, o cep­ticismo e o pessimismo natural sejam o norte da minha bússola.

Há sempre uma contradição entre o que se diz e o que, real­mente, nos acontece na intimidade. A maneira como se chega ao "que se diz" é geralmente tortuosa e angustiada, mas é necessário manter um discreto manto de pudor sobre esse maquinismo que, se não faz de nós pessoas melhores, pelo menos nos habilita a não sermos crucificados em público por qualquer distracção que revele toda a verdade sobre o nosso carácter. Nessa matéria, a diferença entre a minha sobrinha Maria Luísa (e o leitor é testemunha da minha admiração por ela) e o mais reaccionário dos cronistas de Moledo é, justamente, a quantidade de palavras que retiramos do dicionário para falar do milagroso crepúsculo de Moledo. Eu admiro-lhe a comovida capacidade de falar sobre o assunto. Ela admira-se com o silêncio que lhe devoto. Raramente suspeita da pertur­bação que deixo atrás, pelo caminho, quando vejo o céu escure­cer sobre a Ínsua.

in Revista Notícias Sábado – 16 Setembro 2006

sábado, setembro 09, 2006

Os velhos, afinal

O desembarque do Mindelo, em Julho de 1832, não entra nas conversas, habituais ou ocasionais, à mesa dos almoços de domingo. A ideia de que as “tropas liberais” tinham atravessado triunfalmente os areais arborizados do actual Mindelo (na antiga Praia dos Ladrões) foi sempre alvo de ressalvas por parte do Doutor Homem, meu pai, que nunca esqueceu o nome da Areosa de Pampelido, onde na verdade teve lugar o desembarque (chama-se agora Praia da Memória) – se tivesse vivido na época, e passado o armistício das guerras civis, ele teria sido um cartista, mas hoje já não se conhece a diferença entre o Duque de Saldanha e o da Terceira. Um dos meus sobrinhos considerou que não tinha utilidade conhecer a diferença entre cartistas e setembristas porque isso eram coisas de outros tempos. Na verdade, a história não se repete sempre da mesma forma e ninguém na família, em seu estado normal e aceitável de juízo, acha decente a ideia de queixar-se da vida. Basta haver retratos dela e que os velhos se interessem pelo assunto, continuando a saber distinguir cartistas e setembristas.

Ser velho é uma ocupação sincera; nada nos pode enganar, em nada podemos enganar os outros – vê-se pelo corpo. O Doutor Homem, meu pai, considerou que a travessia dos seus anos derradeiros devia fazer-se com a mesma velocidade a que viveu: moderada, mas a vários tempos. Ele acreditava que esse era o segredo de uma longevidade que se tornou tradicional na família e nunca concedeu margem de manobra à idade, excepto quando, de tempos a tempos, regressava dos funerais. Um funeral, nesses tempos, tinha uma dimensão trágica que não se lhes conhece hoje, porque a morte está vulgarizada como um acontecimento que nos chega pela televisão e no cinema; habituámo-nos.

A verdade é que nos habituamos a quase tudo. Questão de sobrevivência, como se sabe: com o tempo, e as suas ameaças, resta-nos aceitar a ordem das coisas, e a ordem das coisas manda que aceitemos a velhice como uma condição. Há uma ideia muito comum hoje em dia, certamente alimentada por muita má-fé e uma certa nostalgia da imortalidade, segundo a qual se deve perseguir o ideal da “eterna juventude”. Não é uma ideia generosa. O tempo, que consome tudo, é mais doce nos verdes anos, enquanto não há reumatismo nem males das coronárias, mas o princípio de que se deve promover a juventude é próprio de quem não reconhece a força do destino ou de quem se quer substituir a ele. As actrizes que se recusam a envelhecer recusam-se também a serem fotografadas para não mostrarem como o tempo é um passageiro infalível da nossa vida. É uma forma, como qualquer outra, de encarar as coisas.

As minhas irmãs e um dos meus cunhados descobriram há anos a virtude do exercício físico e da meditação oriental – e sentem-se felizes. São pacientes e fazem genuflexões, transpiram e podem tocar o pé esquerdo com os dedos da mão direita. Noto pelo seu ar que travam um combate entre iguais e isso comove-me. Esta gente devia ser louvada porque faz um esforço (que eu considero nos limites do sobrenatural, preguiçoso como sou) para continuar a viver com dignidade, se bem que o mundo, no entanto, não lhes responda à altura, enumerando até à exaustão as virtudes da juventude. Torna-se cansativo.

Se pensarmos bem, os velhos não tomam drogas e cometem muito menos crimes, ocupam menos espaço e não fazem tanto barulho, conhecem haver uma diferença entre setembristas e cartistas (o século XIX não foi há tanto tempo) e a maior parte deles não é perigosa para o resto da humanidade. Mas, como mo recordam com alguma vileza, é evidente que não contribuem para a enriquecer a Fazenda pública nem para estabilizar as contas da previdência social e conhecem melhor – distraem-se mais facilmente – as coisas do passado do que as do presente.

Muitas vezes penso que esse mundo, ao qual pertencem os velhos como eu, o mundo de há trinta, quarenta ou cinquenta anos, é uma vaga inutilidade rodeada de fantasmas que, mesmo sendo fantasmas, vão morrendo aos poucos. Mas reconhecer isso seria perder a única coisa que nos resta, a todos nós: o contentamento de saber que as coisas não ficam por aqui.

in Revista Notícias Sábado – 9 Setembro 2006

sábado, setembro 02, 2006

Os males da existência

Às vezes recordo como Ponte de Lima era diferente nesses dias. O velho casarão continua aberto e é ocupado com pendular regularidade de tempos a tempos, para as reuniões da família, e nunca se colocou a hipótese de abandoná-lo. Nesse meu tempo – refiro-me àquilo que hoje se designa por adolescência – Ponte de Lima era a sede de uma parte do velho Minho romântico, de granitos e verdes escuros. Há toda uma filosofia e uma metafísica sobre o verde do Minho e eu reconheço os seus prolegómenos quando alguém começa a discorrer sobre os verdes de outras terras – o verde-terra de Trás-os-Montes, o verde-seco da Beira, o verde-eucalipto do litoral. Seja, pois, o verde impenetrável do Minho: aquele que tem mais tonalidades, desde a videira de enforcado aos pinhais das encostas e às florestas que encostam a província ao Gerês.

Eu tive, durante duas ou três décadas, a estultice de me julgar um botânico amador, cuidando de ser o único membro da família a especializar-me em hibiscos que, com a sua folha de verde imaculado e a flor frágil, seria até a menos indicada para crescer nas proximidades do mar de Moledo. Porém, a teimosia é um factor com que a Natureza conta sempre, e os hibiscos de Moledo sobreviveram às neblinas, ao salitre e às ventanias. Tamanha coragem e galhardia fez crescer a admiração que lhes tinha – mas a verdade é que os hibiscos mudaram a minha vida. A minha irmã mais nova, que raramente consegue distinguir uma mimosa de uma couve-galega, considerou que as atenções da paternidade (de que nunca padeci, como o leitor conhece) me tinham sido desviadas para as singelas flores que vieram da China para os nossos jardins de temperaturas moderadas. A falar verdade, elas dão-se melhor em temperaturas e humidades tropicais, mas, como se sabe, não há clima que Moledo não visite ao longo do ano (falta-lhe, apenas, o gelo nórdico e polar, que dispenso). Por alguns anos, os vasos e canteiros de hibiscos, ‘syriacus’ ou ‘rosa-sinensis,’ com as suas campânulas rosadas, vermelhas, alaranjadas, esbranquiçadas, eram praticamente o único ornamento colorido do jardim de casa. Dona Elaine, com o seu tom prático de governanta esclarecida, protestava pelo facto de não se poderem – em bom rigor, ela tinha razão – cortar e pôr em jarras à maneira das rosas. Mas satisfazia-se com os braços escuros das japoneiras, o nome que o velho Porto continuou a usar durante muito tempo para designar as camélias dos seus jardins românticos, e que o velho Doutor Homem, meu pai, dizia ser uma planta honrada.

Nunca, nos longos almoços dominicais à mesa da sala de Moledo, houve grandes debates sobre os hibiscos; eles não participam do conjunto de males da existência de que uma família vulgar se possa queixar à sobremesa. A botânica foi sempre uma ciência pouco divulgada paredes dentro.

A tia Benedita, a quem coube o dever zelar pelo ramo ultramontano da família, tem alguma responsabilidade por essa degenerescência romântica de que padeço: o jardim de Ponte de Lima esteve sempre cheio de corredores floridos que amenizavam o peso granítico do casarão. Ela devotava-lhes alguma dedicação sincera e protegia-os como uma matriarca reaccionária, vigilante, a quem a República tinha roubado os padres e destruído o temor do Inferno. Tive sempre admiração por ela, mesmo quando a sua desadaptação aos tempos se tornava insuportável, rezando novenas e promovendo terços marianos pela conversão da Rússia e pela ida do Dr. Afonso Costa para o fogo dos infernos. O seu espírito decidido, que poucas vezes encontrava razões para se comover, amolecia diante desses canteiros que, no fundo, eram uma espécie de purgatório feliz, uma tentativa de absolver a sua soberba e a forma como descria da humanidade.

Os meus sobrinhos partilham dessa admiração sem saberem. Nunca conheceram a tia Benedita, não sabem quem foi Afonso Costa, nem reconhecem Évora Monte – onde o general Azevedo Lemos reconheceu a derrota do senhor Dom Miguel. Mas veneram as flores daquele tio que passa por ser um Matusalém minhoto e, pelo menos uma vez ao ano, por delicadeza, mostram-se curiosos sobre o assunto. Pensando bem, os hibiscos não têm nada a ver com as desilusões políticas da família: limitaram-se a vir da China.

in Revista Notícias Sábado – 2 Setembro 2006