sábado, novembro 25, 2006

O lado errado da história

Os Homem sempre viveram do seu trabalho. Isso podia ter feito deles parceiros do “liberalismo portuense” ou pequenos apoiantes anónimos da República, dando vivas nas varandas e expondo as colchas à passagem dos ministros em visita, esperançados num futuro que havia de chegar. Infelizmente para a Pátria e felizmente para o bom-humor da família, os Homem foram sempre recalcitrantes. A palavra não é exactamente essa, mas traduz o que foi a história das posições políticas de uma família ordeira e desorganizada como a nossa: pessimistas em relação à escolha mais fácil – sermos liberais e republicanos. Acabámos, vencidos, por ser cartistas no constitucionalismo e descrentes na República. Mesmo assim, considerando que estávamos do lado errado da História, acabámos por conservar os velhos símbolos que fizeram de nós um atraso de vida. E, não satisfeitos com o cepticismo que praticávamos, era à Tia Benedita, a matriarca sobrevivente do lado ultramontano, que cabia a tarefa de vigiar os deslizes ideológicos dos sobreviventes masculinos da tribo.

O mais famoso dos ícones da família, como o leitor sabe, é o velho retrato do Senhor D. Miguel, que se conserva em Ponte de Lima como testemunha da nossa inimputabilidade. Na semana passada, com a abundância de chuva das semanas anteriores, as paredes da velha casa de granito precisaram de ser limpas – a minha sobrinha aproveitou para mandar limpar a cópia do velho óleo, levando-o para Braga e entregando a moldura aos cuidados de um artesão respeitável. (Eu imagino o que deve sentir uma votante do Bloco de Esquerda transportando, com mil cuidados, um retrato do príncipe.)
Essa deposição do retrato, durante três dias (já lá está de novo, entregue à penumbra do casarão), não me levou a interrogar o destino mas, pelo contrário, apenas a querer saber por que razão os Homem não se adaptaram aos novos tempos. Creio que a razão, hoje, a esta distância, é puramente emocional. Há, certamente, um fundo de razão nas escolhas políticas, no manuseamento da economia, em matéria de coisas terrenas; mas só uma teimosia divertida pode levar-nos, ao fim de duzentos anos, a refazer a história da Patuleia e a contar espingardas a propósito da Maria da Fonte.

Tradição. Atribuo tudo isso à tradição e a um certo equilíbrio do espírito. A história do mundo ensina-nos duas coisas essências: primeiro, que a moderação é um sentimento mesquinho mas razoável, conquanto seja desprezível; segundo, que, com o tempo, o radicalismo desaparece como uma febre morigerada por causas naturais. Reconheço que o ponto de vista é reaccionário, mas foi assim que fomos educados para sermos protegidos das intempéries da história. Aliás, nos almoços de família, que ocorrem ao domingo neste eremitério de Moledo, quase nunca se mencionam assuntos de política. Os meus sobrinhos raramente se interessam por minudências letais para qualquer alma que pertença a este século: incluo entre elas o episódio de Évora Monte, os discursos de Acúrcio das Neves e os delírios do Marquês de Saldanha.

Quando, nos idos da década de cinquenta, parti para o Brasil (uma temporada de três meses e meio), a Tia Benedita ficou em cuidados. A pobre senhora não conhecia – porque não lhe interessava o assunto – o deslumbramento de Copacabana nem as fotografias dos desfiles do samba nesse país onde raramente havia Inverno. Mas sabia (para ela continuava a não existir Ipiranga) que D. Pedro passara por lá. E, na hora da despedida, em Ponte de Lima, antes de eu fechar a derradeira mala, a murmurou qualquer coisa sobre “o usurpador”. Era um exagero, cento e tal anos depois. Depois, como já em tempos contei ao leitor paciente, relembrando a minha estada no Rio, regressei normalmente e pelo meu pé. Ter atravessado o equador foi um feito notável, mas eu sabia que o meu lugar era aqui, entre quatro estações do ano, entregue ao ritmo do escritório de advocacia e aos livros de família, reunidos pelo velho Doutor Homem, meu pai. Tratava-se, afinal, de uma questão de clima.

A geografia é uma ciência reaccionária, como se sabe: não é possível pedir a um minhoto que atravesse os mares para mudar o temperamento. Consta que D. Carlota Joaquina voltou pior do que foi e que Sua Majestade, o marido, teve de ser chamado à pedra. Assim nos acontece a todos, mais tarde ou mais cedo.

in Revista Notícias Sábado – 25 Novembro 2006

sábado, novembro 18, 2006

Aprender a cismar

A minha sobrinha Maria Luísa pergunta-me, de vez em quando, ao chegar a casa com o 'Jornal de Notícias', como esco­lho eu os temas destas crónicas. Limito-me a dizer que são horas de almoçar, tentando levantar-me pela segunda vez do cadeirão mais perto da galeria de hibiscos, ao fundo da varanda, esconden­do o meu exemplar do jornal entre os almofadões, uma vez que me levanto cedo de mais para as horas modernas de hoje.

Aproveito as madrugadas de Outono não só para escrever estas crónicas mas também para acordar a horas de antigamente e matar sauda­des do tempo em que havia horas certas; dona Elaine, que há mais de vinte anos conhece o apetite matinal de torradas e de café de cevada, queixa-se amargamente das noites mal dormidas – ulti­mamente, refere os "bicos de papagaio", mas, antes disso, enume­ra os males da meteorologia e as incertezas do tempo. Por detrás da sua desfaçatez minhota, a governanta de Moledo é uma entu­siasta das conversas sobre o aquecimento global e o desconcerto do mundo, coisas que atribui, com algumas variações, ou à super­população (na sua linguagem, há gente a mais por todo o lado) ou ao excesso de carros na estrada que vai para Cerveira e Caminha.

Neste Verão, com uma irmã ainda brasileira (dona Elaine regres­sou do Rio de Janeiro ainda nova, há bastantes anos, para se ins­talar com as suas arrecadas numa aldeia dos arredores de Vila Nova de Cerveira - coisa que não conseguiu porque "tinha sauda­des de trabalhar"), foi passar uma semana à Madeira. Veio de lá inspirada e acreditou que a ilha, verde e mimosa, seria uma depen­dência do Minho de antigamente, colorido com paletas de um verde-escuro e intenso. Gabou as colinas e os precipícios, e pas­sou bem com a humidade, para ela um substituto amável do iodo das praias da sua província. Creio, pela conversa que escutei com uma das minhas irmãs, que visitou mesmo o casino do Funchal e se diver­tiu bastante. Numa das manhãs mais recentes animou-se a aconselhar-me mudança de ares: "O senhor doutor, em vez de estar aqui a cismar, devia era ir de viagem uma vez ou outra."

A ideia de que eu fico "aqui a cismar" é realmente uma novidade. No meu tempo da Madeira, onde me levou um navio cinquentão, cheio de ingleses e de asmáticos de várias nacionalidades, o Hotel Reids tinha acabado de se despedir de Churchill, e alimentavam-se muitas conversas sobre as aguarelas onde o velho 'tory' teria representado o verde madeiren­se e o colorido das suas colinas, além das libações de históricos verdelhos e malvasias. Cismei mais durante a viagem de barco do que nas penumbras tranquilizantes do Funchal, mas já lá vão mui­tos anos e não recordo bem os temas da época, tão amenos como a meteorologia local.

A minha sobrinha, que participou na conver­sa, acha que eu começaria a cismar mal atravessasse os eucalip­tais de Vila do Conde, afastando-me da minha biblioteca e do pobre jardim que o Outono está a desfolhar lentamente, mas ela sabe que não tem razão. O facto de saber que existe um mundo para lá de Santa Tecla e da Senhora da Agonia é um argumento para não me indispor contra os elementos ou contra as saudades de casa. Com surpresa minha, não cismo verdadeiramente. Limito-me a considerar as coisas como elas são, o que é uma desculpa tão pobre como qualquer outra.

Há quem atribua ao Outono uma gran­de percentagem de razões para começarmos a cismar, como se nos desfolhássemos com os plátanos e as videiras das colinas. Pessoalmente, limito-me a agasalhar-me, atitude que me tem pro­tegido bastante dos resfriados e da ameaça do reumatismo sazo­nal. Esta indiferença há-de parecer relativamente arrogante. A minha sobrinha perguntou-me se eu penso na morte. "Não cos­tumo cismar", respondi na altura. Penso apenas em gente como eu, dobrando os oitenta, caminhando pelo paredão diante do mar, dobrando as articulações e usando chapéu para se proteger do sol de Novembro; e penso que a idade de cismar passou numa das várias adolescências a que nos entregámos de alma e coração, no meio de uma paixão ou na falta dela.

O velho doutor Homem, meu pai, aconselhava chá de cidreira para todos os males, inclusive para a tendência de cismar. Por detrás daquela aparência de circunspecto cavalheiro do velho Porto escondia-se um sátiro que ironizava até sobre a existência de vida para lá da morte. A cidreira não era mais do que um vago perfume de eternidade.

in Revista Notícias Sábado – 18 Novembro 2006

sábado, novembro 11, 2006

A fotografias de animais

O dr. Bloch, que eu conheci no Brasil – Rio de Janeiro – durante a minha estada nos anos cinquenta, gostava de animais. Foi o caso mais espantoso de dedicação a animais; no caso, a um numeroso grupo de cães que povoava a sua luxuosa casa de quase magnata. Mais tarde, incluiu a fotografia dos seus cães num cartão-de-visita pessoal e, quando se popularizou a fotogra­fia a cores, o retraio adquiriu vida própria. O postal familiar, que incluía o dr. Bloch, a esposa e os canídeos, regurgitava de vida. Praticamente, o postal – recebi alguns, por alturas do Natal – latia com uma generosidade impressionante, distribuído por várias raças e sons. Como estive instalado no Hotel Glória, a dois pas­sos do seu escritório, observei várias vezes o espectáculo dos pequenos animais, obedientes, entrando e saindo do carro azul-escuro, em fila, afinados de voz, alinhados como um grupo de samba.

Eu tenho uma relação vulgar com os animais mas não pertenço ao grupo de aduladores ou excessivos amantes da fauna próxima da designação de "animal doméstico", como cães, gatos, caná­rios, periquitos ou peixes coloridos. Durante algum tempo, compe­netrado, assisti na televisão a documentários sobre "a vida selva­gem", e acho que se tratou de um esforço honesto – vi répteis, mamíferos, insectos, peixes, tudo o que constitui prova de que existem outras espécies além da nossa, mas o tema não me comovia.

Há duas semanas, esta crónica foi ilustrada com uma fotografia de um cavalo. A primeira sensação foi de surpresa e a segunda a da necessidade de reparação, pelo menos à memória. Tenho pelos cavalos uma ternura marginal que relaciono com os ciganos que - estávamos nos anos cinquenta, sessenta - ocupavam um velho pinhal de Ponte de Lima, propriedade da família, mas onde estavam autori­zados a pernoitar durante umas sema­nas de Inverno. O meu avô, nos inter­valos da sua carreira de administrador de quintas do Douro, instalava-se no Alto Minho em busca do verde que não encontrava nas colinas de xisto e nas vinhas que descoloriam sazonalmente. Os cavalos que rondavam os muros dos pinhais limianos ficaram-me na memória. Na verdade, não sendo um entusiasta do contacto com os ani­mais, nem sequer do chamado mundo dos animais, as suas fotografias fica­ram-me sempre na memória a partir desse postal natalício em que a família do dr. Bloch se apresenta­va risonha e ruidosa, mas ligeiramente absurda.

É comum dizer-se que os amantes dos animais são pessoas em geral sensíveis, capazes de gestos generosos e de disponibilida­de para a comunhão quase mística com a natureza; pessoalmen­te, acho que os amantes dos animais são, apenas, pessoas que gostam de animais. Daí até concluir que há nelas uma superiori­dade moral e mística sobre os botânicos ou os geólogos vai uma grande viagem – e cheia de atalhos. Na verdade, os animais de São Francisco de Assis, aos quais o santo devotava alguma dedi­cação, constituem uma metáfora religiosa acerca dos simples, dos humildes e desprovidos de inteligência; deles viria alguma lição contra a escolástica e a hipocrisia da época. A alegada e comentada misantropia dos Homem nunca buscou consolação na preferência pelos animais (ou na sua "simplicidade", que deveria ser tocante ou, pelo menos, comovente). Havia em casa dois gatos admitidos pelo velho doutor Homem, meu pai – permitiam-se-lhes certas liberdades e eram considerados parte da família, mas nunca foram fotografados para serem incluídos na galeria ou na genealogia domésticas.

A maior parte dos amantes de animais prefere-os aos seus seme­lhantes e eu compreendo o pessimismo natural acerca da nossa espécie, que produz guerras mundiais e acidentes na camada de ozono; evidentemente que se trata de animais domesticados, cor­datos, habituados ao contacto com gente que anda sobre duas pernas, obedientes, alimentados e amansados (como se sabe, o "mundo animal" reserva as suas crueldades para bem longe dos seus protectores).

Não, não me comovem as fotografias de animais. Sei que eles existem e desejo-lhes uma vida feliz, preenchida e serena. São, bem vistas as coisas, votos mais ou menos universais.

in Revista Notícias Sábado – 11 Novembro 2006