sábado, outubro 27, 2007

O paraíso dos escritores

A vida não acaba. O meu tio Alberto, bibliófilo de São Pedro de Arcos, considerava largamente que depois de um dia, outro dia havia de chegar. Com este princípio, que ele dizia ser arran­cado à inteligência do Minho, apontava o mundo de colinas, vales, ravinas enclausuradas, lagoas no sopé das serras – enfim, o mundo de São Pedro de Arcos, aquele a quem devo­tou a sua sensibilidade de poeta nunca publicado.

O único membro da família que publicou um livro de versos (de que ninguém leu bastante) teve a sorte de viver num período em que os poetas eram recebidos nos salões e em casa de famílias. O velho doutor Homem, meu pai, que dedicava uma grande parte da sua biblioteca aos poetas românticos ingleses, abomi­nava vates em carne e osso; em seu entender, um poeta não tinha o direito de se apresentar vivo. Essa sua repulsa era conhecida da família, tanto como a sua paixão pela poesia. Conhecia de cor as mais corpulentas estrofes dos nossos poe­tas do século XIX e recitava-as com trejeitos cómicos; eram famosas as suas interpretações de Guerra Junqueira e de Garrett, dois altíssimos momentos do seu tom jocoso. O meu avô, que conheceu Junqueira e privou com o velho republicano, não apreciava o género, mas tantos anos de convívio com ingle­ses do Douro fizeram crescer nele o sentido da ironia – e da pro­porção. Ambos consideravam que a poesia de Junqueira era boa para ensinar métrica e hendecassílabos, mas que se deve­ria reservar para a categoria das coisas rurais e patrióticas, de braço dado com "Leva o regadinho" e o Hino da Carta.

Para evitar problemas, o tio Alberto preferia escrever opúsculos e artigos sobre história da gastronomia, coisa que o distraía das consultas dos pareceres jurídicos com que pagava as suas aventuras e vadiagens. A ideia de que se era escritor ao publicar-se um livro era mal aceite pelos bibliotecários da família, habituados a conviver com a difi­culdade de traduzir o Tristram Shandy, Milton ou os ensaios de Samuel Johnson. Eles não eram eruditos – apenas tinham a noção das coisas.

Essa "noção" perdeu-se hoje em dia. Portugal vive empenhado em pagar direitos de autor a cavalheiros que escrevem uns livros vagamente parecidos com romances, e a senhoras que – se vivessem noutra época – resolveriam o problema com uma ida mais frequente ao confessionário. A minha sobrinha Maria Luísa, a quem contei o achado, pensa que sou um machista empedernido e uma alma penada sem sensibilidade. Ela comove-se facilmente com poetas que desarrumam o dicionário e são considerados humanistas e homens de letras; quanto aos romancistas, tem as suas prefe­rências por histórias familiares que eu li há muito nos romances populares de Mrs. Trollope ou nos folhetins de antanho. A lite­ratura popular enchia as férias de Ponte de Lima e os areais de Moledo e Afife sem cerimónia e sem regras. Eram volumes que não ficariam bem na Biblioteca Geral da Universidade (refiro-me à de Coimbra), mas que ilustrariam qualquer época balnear - liam-se bem, da mesma forma que digeriam bem as cataplanas de Vigo; tinham sabor, vinham ao gosto de todos e tinham marisco em abundância. As senhoras que hoje escre­vem romances de família são excelentes namoradeiras e conhecem a maquineta que comanda as emoções – um casamento desfeito, uma família desorganizada, vícios normais para a idade e interrogações chãs e acessíveis sobre ser adul­to. Melhor do que isso fez a literatura popular de outros tempos, que nos ofereceu 'O Conde de Montecristo', 'A Ilha do Tesouro' ou, bem vistas as coisas, alguns dos folhetins avulsos de Camilo, com a vantagem de serem bons em gramática e de não se levarem a sério no mais importante.

Diante do vastíssimo número de escritores de hoje em dia, o velho doutor Homem, meu pai, colocaria a hipótese de cha­mar pela polícia de costumes, uma velharia já no seu tempo. Mas a intenção fica.

A vida não acaba, como filosoficamente considerava o tio Alberto, mas os escritores multiplicam-se bravamente. Por mim, leio cada vez mais devagar e tenho de escolher os livros da mesa-de-cabeceira.

in Revista Notícias Sábado – 27 Outubro 2007

sábado, outubro 20, 2007

Complementos directos

Transmitidos numa televisão a preto e branco, os derra­deiros telejornais do velho regime eram tristes e enfadonhos, mas tinham boa gramática.

Com o tempo, a televisão habituou-nos ao lastimável espec­táculo de gente que mastiga sílabas com aplicação, construindo frases onde raramente um advérbio está bem colocado ou onde os verbos nunca pedem complemento. O desastre não destrói apenas a gramática; atinge, salvo erro, um pouco de tudo.

O velho doutor Homem, meu pai, com o seu temperamento frio e pouco loquaz, prezava muito a oratória do dr. Salazar – achava-a "muito indicada para o País", expressão que fazia acompanhar de um gesto que limitava a fronteira do território até à porta de casa. Ele achava que uma frase bem equilibra­da equivalia a ter maneiras à mesa e era um bem precioso num tempo em que os clássicos já tinham desaparecido dos nossos vícios e das nossas famílias.

A minha sobrinha Maria Luísa, que ficou muito desiludida com o Prémio Nobel dado àquela senhora inglesa que nasceu na Pérsia, mantém-me actualizado acerca das novidades literárias mais correntes. O seu objectivo é o de fornecer-me razões para pensar que o mundo não está perdido. Perniciosamente, ela deixa nos sofás, estrategicamente abandonados, alguns livros que poderiam ilustrar-me nos anos finais de uma vida dedicada a recusar coisas novas ou modernas. Folheio alguns e leio poucos; não sou um crítico; não passo de um modesto zelador de coisas obsoletas onde, nos meus momentos de vaidade, pensei encontrar algum género de prazer intelectual. Esse tempo passou demasiado depressa e mantive-me o mesmo preguiçoso de sempre, incapaz de trocar Disraeli por Garrett ou de abdicar das velharias que me acompanham desde a juventude – o prazer da novidade dá algum trabalho a ser merecido ou gozado e nem sempre é retribuído. No entanto, reconheço, esta tentativa de educar o meu pobre espírito constitui uma espécie de troca comercial ou de compensação pelos livros ainda não devolvidos e retirados das minhas estantes. Não me importo com eles; vivo rodeado das coisas essenciais – e esse é um dos raros prazeres concedidos aos velhos que aprenderam, com os anos e com o reumatismo, a abdicar de quase tudo excepto das suas memórias.

O velho doutor Homem, meu pai, achava que o País (esse mundo que vivia para lá da porta de casa) bem podia abdicar de várias coisas. Ele assistiu com passividade ao final do Império, considerando – com alguma justiça — que tudo estava já previsto desde que D. Pedro nos tinha "livrado do Brasil". E, se a queda dos territórios da índia não foi uma surpresa ("nem um bem nem um mal"), o fim do Império, depois de 1974, apenas ilustrou o que tinha de ilustrar – o fim do mundo como o conhecíamos na altura. Se o País abdicou do seu império, pois que não abdicasse, ao menos, dos par­cos talentos que ainda reservava nos alicerces. Em vão. O País mudou muito; os telejornais da democracia já não são enfadonhos nem tristes; apenas são mais amargos e enegre­cidos por fatais erros de gramática. Os meus irmãos comen­tam bastante as conversas do prof. Marcelo Rebelo de Sousa, garantindo que se trata de "um pantomineiro com graça". Acedo à definição. Os Homem sempre prezaram os "pantomineiros com graça" porque sabiam que não deviam acreditar neles; bastava apreciar-lhes o descaramento, que é premiado pela democracia. Mas nada de cometer-lhes alguma seriedade. Foi essa a razão por que o velho doutor Homem, meu pai, duvidou da figura daquele homem de monóculo e sobrancelhas pesadas, que encabeçava a revo­lução. O então general Spínola podia ser um general muito bom – mas usar um monóculo durante a revolução era por certo mau prenúncio. Poderá argumentar-se que no calor das revoluções ninguém se preocupava com questões de estilo ou de gramática. Mas a observação sobre o funesto destino do general estava condenada a entrar nos anais da família. E foi. Foram. Ambas as coisas.

in Revista Notícias Sábado – 20 Outubro 2007

sábado, outubro 13, 2007

A melancolia de Outono

A grandiosidade do crepúsculo do Outono não me traz à memória "those sad, dangerous things", aquelas tristes e perigosas coisas para que o velho doutor Homem, meu pai, nos costumava advertir. Ele tinha lido o verso num daqueles poetas isabelinos que assinalavam a triste doçura do amor e citava-o amiúde quando os plátanos da Foz começavam a anunciar o Outono.

Como todos na família sofriam da tentação do demónio meteo­rológico, a indicação não era vista como uma ameaça de "recaída literária", mas como um indicador para quem sofria de reumatismo ou era receptivo aos vírus das gripes sazonais. Aliás, dona Ester, minha mãe, acreditava que só eram permi­tidas quatro constipações por ano, cada uma delas correspon­dendo a uma estação. Mais do que isso era considerado um excesso quase temperamental, que merecia alguma indiferen­ça. Esta determinação tão pouco maternal podia ser vista – erra­damente — como uma manifestação de crueldade; na minha infância, as mães tratavam dos filhos como repositórios de doenças prováveis. Na altura não sabíamos o que eram vírus, e as gripes eram atribuídas ao ar do tempo ou às suas mudanças. O planeta estava cheio de perigos invisíveis e as crianças deve­riam sobreviver-lhes com a contribuição de agasalhos que eram generosamente ministrados mal a "época balnear" se avizinha­va do seu termo.

Dona Ester, minha mãe, educada num colégio inglês do Porto, lera apenas a puericultura suficiente para saber que os filhos nascem e crescem em contacto com a natureza, os banhos do rio (o Douro seria uma espécie de Tamisa), cami­sas imaculadamente brancas ao jantar e muita disciplina no cumprimento de horários. Tirando isso, os jovens deviam bron­zear-se. O velho doutor Homem, meu pai, acusava-a de um certo desvio levantino, verificando a insistência no contacto com o sol e a praia. Ela atribuía virtudes essenciais ao contacto com o sol de Verão, certamente com base na crença de que o corpo humano era uma espécie de bateria recarregável anualmente durante os meses de estio. O seu marido con­cordava, suspeitando que o facto de se tratar de seis filhos era um argumento muito justo para os enviar para o areal, libertando a casa dessa horda de selvagens, adolescentes ou não. Mas o princípio, a doutrina, ficavam: a frequência da praia produzia corpos e mentes saudáveis. E produziu.

De modo que o crepúsculo do Outono não é um prefácio à melancolia da época. Traz-me recordações invejosas. Naquele período que ia do Verão de Ponte de Lima (quinze dias de Agosto, fatais e silenciosos, familiares) ao recomeço da vida depois das férias, havia um período em que permanecíamos na praia, assistindo à despedida da época bal­near. Os anos cinquenta foram os meus anos românticos; o pôr do Sol de Afife, a estrada do Minho (esse litoral fotogénico que vai de La Guardia até aos arredores de Vila do Conde), a primei­ra viagem ao Brasil, o meu Verão no Tamariz – tudo isso tem um ar de despedida de época balnear. De repente, os toldos de praia (uma raridade na época) recebiam o primeiro látego do vento de Outono, as primeiras chuvas, as leituras finais que sobravam da biblioteca aconselhada pelo velho doutor Homem, meu pai, con­fiante em que todas as estacões do ano eram boas para cultivar o espírito e para afastar os sintomas de barbárie. Mas eu já não era adolescente na altura. As minhas irmãs atravessaram mais tarde a sua adolescência e tinham saudades da cidade e das amizades. Os meus irmãos queriam regressar ao convívio de rapazes e desfazer-se daquela modorra estival. Eu já tinha envelhecido e vestia fatos cinzentos, ou escuros, e usava cha­péu. Formava a minha biblioteca. Resumia os meus amores até então como um Casanova que frequentava A Brasileira mas não confessava as suas perdas profundas. Lia a imprensa com serie­dade, interessava-me, jogava ‘poker’. O crepúsculo do Outono, com aqueles tons de domingo vespertino, ou o ruidoso crepitar das lareiras de Inverno, só comovia o meu lado 'dandy' que jul­gava viver para lá do canal da Mancha, caminhando em parques cheios de árvores ou em cidades cheias de alfarrabistas. Num desses Verões desfez-se o meu casamento, que só tinha sido anunciado com moderação. O meu pai mencionou, vaga­mente, que "o Kubitschek vai construir uma cidade lá no Brasil". Dona Ester, minha mãe, enviou-me para o Tamariz, para que me curasse. Já nessa altura, o Verão era uma espé­cie de sanatório.

in Revista Notícias Sábado – 13 Outubro 2007

sábado, outubro 06, 2007

De uma coisa a outra

Antigamente éramos mais saudáveis. Existiam as chamadas doenças gerais mas sabíamos menos dos pormenores, das complicações e das consequências de cada acto – além de não haver livros sobre doenças disponíveis para serem distribuídos ao comum dos mortais, que os coloca orgulhosamente nas estantes como um emblema de sapiência. Trata-se de uma literatura perigosa, própria dos tempos actuais, científicos e muito rigorosos. Isso explica que antigamente houvesse simples e banais dores de cabeça, mas que hoje existam cefaleias; o que antes evocava a urgência de um chá, demanda agora a presença de um especialista em doenças do aparelho urinário; a flor de laranjeira foi substituída por uma vasta quantidade de anti depressivos. A minha sobrinha, com uma regularidade que nela é inabitual, toma os seus comprimi­dos para dormir tal como o velho doutor Homem, meu pai, pedia o seu chá de boldo para amenizar digestões e excessos.

Hoje, sabemos o preço de cada gesto irreflectido da nossa vida de selvagens ou de provincianos do Minho. Uma hora ao sol da praia não é – como pensava dona Ester, minha mãe, para quem todos os filhos deviam bronzear-se em liberdade – uma hora de sol, mas um perigo letal para a saúde futura. Tal como um almoço de domingo, familiar e abundante, é uma ameaça para a nossa tranquilidade dietética. O colesterol é, neste parti­cular, uma invenção recente na minha vida e ouvi falar dele há apenas cinquenta anos, quando a doença mais literária desses tempos ainda era a gota. Ao escutar os relatos dominicais sobre o sofrimento dos hipocondríacos, penso naqueles tempos em que a eternidade era apenas uma metáfora religio­sa e não uma ambição de todo o ser humano.

A minha família era incuravelmente conserva­dora e desinteressante. Mantinha-se nessa fronteira que delimita a mediania do excesso; o cálice nocturno de vinho do Porto tinha funções profilácticas e não era um passo no caminho do pecado, do hedonismo ou do alcoolismo; o cozido à portuguesa era um ritual familiar e não um crime contra a saúde; e o charuto digestivo – o velho doutor Homem, meu pai, mandava-os vir de Vigo, por achar que os contrabandistas galegos eram mais cosmopolitas do que os nacionais – constituía um cerimonial desti­nado aos grandes momentos, e não um peso na consciência.

O tio Alberto, cuja biografia ficaria para sempre marcada pelo seu encontro com D. Álvaro Cunqueiro (a quem invejava os conhecimentos gastronómicos, muito mais do que a métrica dos versos do mestre galego), costumava dizer que o grande perigo da "saúde absoluta" era aumentar e expor a vaidade dos seres humanos, porque eles passavam a acreditar numa vida eterna garantida pela medicina e não pelas suas boas acções. Ele era um homem do Antigo Regime mas tinha razão. Tentou levar a tia Benedita a provar as ostras de Ribadeo ou de Corcubión, com o argumento de que a matriarca da família iria amenizar a sua rigidez de carácter ao descobrir alguns prazeres munda­nos. Ela resistiu até ao fim da sua vida, com argumentos morais muito semelhantes às razões que hoje os sacerdotes da saúde usam para combater os excessos da humanidade.

No meu tempo havia toda uma mitologia em redor das ostras, um alimento do Inferno destinado a instantes de devassidão. O meu tio Alberto, que se apaixonou por uma antiga princesa do Cáspio, achava as ostras um bom ornamento para o litoral galego mas não um dos pecados enumerados pelos Concílios – quanto ao caviar, sim, era chave da antecâmara da perdi­ção. Ele considerava que, sendo o esturjão do Cáspio um sobrevivente entre as espécies condenadas pelo Dilúvio, algum motivo haveria para ser tão prezado. A sua princesa persa era uma senhora delicada e culta que nascera já fora da Rússia, de onde a família saíra nos anos vinte. Quando soube do romance, que durou muito tempo, a tia Benedita temeu tratar-se de uma bolchevista (ela sabia de História apenas o essencial dos almanaques). O meu tio, bibliómano de São Pedro dos Arcos, não se deu ao trabalho de a desmentir. Remeteu-se ao silêncio, como um amante invejado, e limitou-se a suspirar pelo caviar.

in Revista Notícias Sábado – 6 Outubro 2007