sábado, novembro 24, 2007

Recordações meteorológicas

No dia 25 de Abril de 1974 desceu até à rua e foi, em passo lento, até à loja dos jornais - levando consigo um guarda-chuva; podia ter chovido. O velho doutor Homem, meu pai, poderia ter sido um meteorologista emérito se lhe dessem mais ouvidos, mas a sua descrença no género humano esten­dia-se igualmente aos elementos. Desconfiava deles e, por inerência, não acreditava em previsões meteorológicas, que achava talhadas para o fracasso. Ele não era do tempo das grandes imagens por satélite divulgadas na televisão; limitava-se a abrir a janela ou a dar dois passos na varanda, aspirando o ar da manhã ou refugiando-se na escuridão da noite. Tal como os antepassados, imaginava que havia uma leitura das nuvens e dos crepúsculos, e que a natureza se encarre­garia de anunciar os desenvolvimentos da meteorologia essen­cial. De certa maneira, apreciava nos meteorologistas a tendência para a poesia e a previsão acidental. Chegou mesmo a descobrir um poeta que tinha sido técnico num obser­vatório meteorológico, em Luanda, como prova da sua tese. Nós, hoje, achamos que ele não tinha razão. Na verdade, não tinha; mas, bem vistas as coisas, tinha.

Hoje sabemos, com grau elevado de rigor e com grande velocidade, o que acontece no outro lado do planeta: um tufão chinês ou uma tempestade nas Américas são noticiados minutos depois de levantarem telhados e interromperem estradas. Naquele tempo, nos idos de sessenta e setenta, teríamos de esperar pelo menos um dia para conhecer os pormenores essenciais, impressos na segunda ou terceira página do jornal, repletos de advérbios e adjectivos, relembrando a transitoriedade das coisas e a pequenez do ser humano.

Em Ponte de Lima, ainda nos tempos do reinado da tia Benedita, a temida matriarca da família, havia um catavento. As observa­ções limitavam-se ao essencial, confirmando que o vento do Sul arrastaria consigo a chuva – o que se verificaria se houvesse nuvens e, no entender do meu pai (o céptico de serviço), predisposição para chover. Eu compreendo-o. Encarregado de alimentar uma família e preocupado com o dia de amanhã, todas as questões meteo­rológicas deveriam reduzir-se aos verbos pronunciados no passado: choveu, caiu granizo, trovejou, desceu a temperatura. O futuro era uma incógnita. Ele entendia que uma parte da nossa natural apetência para a ninharia e para a inutilidade provinha da abundância de meteorologis­tas que observavam as coisas celestes com o mesmo grau de fiabilidade com que os apostadores aguardavam os números dos jogos da Santa Casa da Misericórdia: a sua fé transformava-se em certeza. Por isso, sempre que se falava do tempo, era vulgar vê-lo abandonar a leitura do jornal e declarar que ia chover. O tio Alberto, bibliófilo de São Pedro de Arcos, secundava-o imediatamen­te: "E granizo nas montanhas, está visto." Eles reservavam estes diálogos para os encontros de família, emprestando-lhes uma seriedade razoável para desconcertar os incautos. Anunciavam trovoadas fatais e tremendos nevões para lá do Geres, numa espécie de escalada do absurdo.

A tia Benedita achava que o Anticristo tinha reencarnado em Ponte de Lima e atribuía o desvario à anunciada tentativa de o homem chegar à Lua, Ela nunca chegou a assistir aos primeiros pas­sos dos astronautas na poeira lunar; morreu dois anos antes, mas incomodavam-na as consequências. Naquele dia em que, pela televisão, eram transmitidas as imagens da aventura, a família dedicou-se ao assunto. Formou-se espontaneamente um círculo de especialistas em astronomia, astronáutica e ciência política (esta não poderia faltar), reunido em torno de mapas da órbita celeste e comentando em directo aquela revolução na história da humanidade. Antes que alguém exagerasse nos termos, compondo frases ditirâmbicas e despropositadas, o velho doutor Homem, meu pai, atalhou com o pedido que ficou famoso naqueles dias: "Levem-lhes o Anthymio de Azevedo, que eu preciso de saber se vai chover." Ele não era apenas um céptico. Era, além do mais, um sátiro.

in Revista Notícias Sábado – 24 Novembro 2007

sábado, novembro 17, 2007

A esquerda e a direita

A minha sobrinha Maria Luísa acha que eu não sou quem sou, declarando falida a minha herança conservadora – que ela atribui a um aparente desconchavo, uma vez que as pessoas de que ela gosta pertencem, com poucas excepções, "à esquerda".

Durante a tarde de sábado aceitam-se estas considerações, porque o domingo se aproxima e, com ele, um raio de luz ilumi­na as nuvens que se precipitam sobre Moledo, lembrando-nos a estação do ano, a idade e a relativa inclemência do clima. Esta ideia geral sobre "as minhas ideias políticas" regressa cicli­camente após períodos de doce acalmia e de suavíssimo concerto familiar. Ora, acontece que eu pertenço – por preguiça, claro está – a outro mundo. Esse mundo tem os seus limites e, pior ainda, as suas limitações. Na adolescência desse univer­so, a esquerda e a direita tinham obrigações e sinais que as identificavam. Não existem mais. A minha sobrinha acha que a bondade geral, a sensibilidade e a generosidade nasceram na margem esquerda dos caminhos, ficando a direita reservada para os espíritos tortuosos, para a maldade e para a insensibi­lidade. Por mais de uma vez essa disputa reacendeu-se a par­tir de evidências que eu julgava inquestionáveis. Por exemplo, a biblioteca, nome que guardamos – em casa – para o arma­zém de velharias bibliográficas e fundo de literatura geral que foi passando de pais para filhos. Com esta biblioteca, extensí­vel em temas e autores como um planisfério elástico, eu não poderia levar a sério nem "o conservadorismo da família", nem a existência do retrato do Senhor D. Miguel (no casarão de Ponte de Lima), nem a ideia de que o mundo está razoavel­mente bem feito. Eu devia, com algum exagero, evidentemente, esconder-me nas penumbras a lançar bombas contra a família, as classes médias e o senhor arcebispo de Braga.

Acontece que um dos desacertos com que o mundo tem lutado nasce da ideia de que "o bem" está à esquerda, a quem o futuro assenta como uma luva. Ao apropriar-se do "bem", fica reservado o "mal" para todos os que não ponderam votar no dr. Louçã – desde velhos ultramontanos (que já não existem) a cépticos que manuseiam almana­ques de história pátria dos últimos duzentos anos ou que duvidam das boas intenções da sociedade em geral. E, estando o "bem" em algum lugar, ele não pode praticar-se se não se transportar a bandeira das esquerdas. É, digamos, uma lógica insofismável.

Os sábados de Moledo são muito dados ao temperamento peripatético; há uma certa melancolia dos pinhais que o Outono agra­va e amplia. As discussões ideológicas não ultrapassam esse limite para não ferir a paisagem ou enegrecer o crepúsculo. Essencialmente, eu não sou um homem de fé. A tia Benedita (que chefiava o ramo ultramontano da família) perseguia este género de excentricidade, que ela acreditava estar na origem de quase todos os pecados capitais e a quem atribuía a capa­cidade de fazer ressuscitar o dr. Afonso Costa, de reanimar a Carbonária e de fazer ruir todo o edifício moral em que viveu. Convenhamos que ela tinha certa razão. Mais por preguiça (que é o estado natural no género humano) do que por tentação, os Homem de quase todas as gerações posteriores à convenção de Évora Monte e ao exílio do príncipe proscrito evitaram gran­des altercações com os novos proprietários do País. Meteram-se muito consigo. Acharam – em graus diferentes – que esse mundo feito de virtudes republicanas, de escola pública, de ateísmo e de fé nas classes trabalhadoras não garantia a bondade das suas intenções. Limitaram-se, por isso, e em proporções diversas, a gemer, a divorciar-se, a trabalhar, a per­der o pé em aventuras mundanas e a não frequentar os casinos. Todos sabiam o essencial; e o essencial era que o género humano é um mistério; em podendo resvalar para a desgraça, fica garantida a desgraça; a "novidade" pode ser "novidade" mas não traz grande mudança nas nossas vidas.

Apesar de concordarmos em muitas coisas, a minha sobrinha não pondera analisar a hipótese de estar cada vez mais "à direi­ta". Ela considera, com grande magnanimidade, que o mundo lhe obedece cegamente, e às suas ideias – e que eu é que estou mais "à esquerda". Disfarcei como pude, olhando para o relógio. Os dias estão mais pequenos.

in Revista Notícias Sábado – 17 Novembro 2007

sábado, novembro 10, 2007

Cismar pelo Inverno

Dona Elaine, a governanta e autoridade desta casa, anteci­pou para esta semana a temporada de Inverno, ainda tímida. Este ano, uma chuva providencial ajudou bastante, e ela justifi­cou: "Assim estará tudo preparado."

Chegar o Inverno lembra um dos momentos preferidos de Macbeth, na morte da sua mulher: "Apaga-te breve chama, apaga-te. A vida é apenas uma sombra que passa." Em 1606, a ideia ainda não se tinha repetido com esta constância – mas no nosso século trata-se de um exagero melancólico que não acrescenta grande coisa nem à literatura nem à nossa opinião sobre a vida e as suas tragédias. Ora, o Inverno começa por ser este abismo. Dona Elaine, que nunca leu Shakespeare, é uma filósofa de Vila Nova de Cerveira com uma larga experiência de conselheira para assuntos gerais, se bem que por vezes abuse na utilização de provérbios que servem para tudo. Nascida numa das aldeias das colinas, emigrou com os pais para o Brasil, de onde regressou ainda nova mas já viúva e decidida a passar alguns anos da sua idade madura numa casa que recebeu reformas e melhorias. Ao fim de uns meses de ociosidade, durante os quais recuperou algum sotaque dos seus pais, e perdeu parte do próprio, começou a cuidar dos destinos deste eremitério de Moledo, colocando em ordem a vasta anarquia em que ameaçava tornar-se o Verão de 1985, com as visitas da família, a areia arrastada da praia e uma certa euforia vivida às horas das refeições. Pôs tudo em ordem e tratou de mostrar que sabia quem mandava: ela. Todos lhe agradecemos.

Habituada ao Verão eterno dos trópicos, custava-lhe a princípio encarar este mundo de baixas temperaturas, lareiras, cheiro de lenha queimada, e árvores que largam, à sorte, as folhas nos jardins. Em seu entender, desde que existisse ordem estava tudo encaminhado. As folhas das árvores, caindo ao acaso no jardim e à porta de casa, eram um atrevi­mento que punha em causa esse sentido de arrumação e de disciplina que ela impôs nos seus domínios.

Por isso, o Inverno começa, verdadeiramen­te, quando Dona Elaine se dispõe a anunciar que a roupa das camas está mudada e que as ementas de fim-de-semana estão definitivamente alteradas. Ela costuma rematar estes anúncios com um provérbio escolhido a dedo, e avisando-me (com uma subtileza que acaba por não escapar a ninguém) que não devo começar a cismar. A proximidade do Inverno e das suas tempestades e desconcertos é o cenário ideal para que os velhos "comecem a cismar".

"Em vez de ficar aí a cismar", já ouvi várias vezes, "podia fazer uma viagem." A minha sobrinha Maria Luísa acha bem. Ela supõe que as viagens são um dos capítulos de qualquer far­macopeia universal, rearranjando o sistema nervoso do ser humano e estabilizando as funções do aparelho circulatório. Costuma dizer-me isto na viagem anual à casa de Camilo Castelo Branco, nos arredores de Famalicão, onde gosto de ir verificar se o relógio de Pinheiro Alves se mantém naquela tris­te posição. Nessa altura aproveito para desobedecer às ordens do meu médico, atrevendo-me a um almoço minhoto com todas as excepções permitidas.

Ora, eu acho isso uma ameaça de que não consigo defender-me. Na minha família não costumávamos cismar. Dona Ester, minha mãe, educou-nos para podermos suportar desgostos e desconsiderações; o velho doutor Homem, meu pai, compor­tava-se como um poeta satírico cujo propósito era rir dos românticos. Ele costumava dizer que a choraminguice portu­guesa tinha sido transformada em lei pelo constitucionalismo e pelos liberais que tanto assinavam decretos como nos puniam com sonetos. A minha sobrinha sofre bastante quando ouve estas perversidades; ela acha que se deve premiar a "sensibi­lidade" e valorizar o lado "emocional" da vida. Nunca consegui­mos chegar a acordo sobre o assunto.

Acontece que a "sensibilidade" e o lado "emocional" da vida são coisas para consumo moderado, como os medicamentos, e que a sua prescrição deve ser consagrada para uso íntimo e estritamente pessoal. Ao ver as montanhas do meu Minho que espera o Inverno, ou a praia de Moledo que escurece com a visão da ínsua, eu não começo a cismar. Simplesmente, fico com frio. E agasalho-me.

in Revista Notícias Sábado – 10 Novembro 2007

sábado, novembro 03, 2007

Coisas de gastronomia

A tia Julieta, uma das grandes senhoras que iluminou todo o século passado, era uma gastrónoma exigente e inespe­rada. Começou a cozinhar apenas depois de ter enviuvado aos 40 anos. Com surpresa de todos, a perda não a desencami­nhou no labirinto da idade madura, antes a libertou para as ale­grias da cozinha e, no seu caso, da mesa. As senhoras desses anos (a tia Julieta nasceu em 1892) não sabiam nem o que era o constitucionalismo nem – depois de casadas — se sentavam à mesa antes dos homens. Arrumados os dois óbices (a igno­rância sobre o constitucionalismo e a existência de um marido), a tia Julieta singrou. Ao contrário da tia Benedita, representan­te abnegada mas natural do génio ultramontano, ela encarou a viuvez como uma libertação e uma razoável condição do desti­no. Essa leveza de espírito levou parte da família a considerar que "ela sempre quis ser viúva" como outras senhoras queriam ser casadas e outras, muito poucas, ou nenhumas, queriam continuar solteiras. Mas eu sou o último dos últimos a poder ou a querer explicar o comportamento e as escolhas das senho­ras. Limito-me a continuar a tratá-las por "senhoras" em vez de por "mulheres". A minha sobrinha diz que, por detrás desta eventual delicadeza, está o velho reaccionarismo que me leva a ignorar a existência das sufragistas e das suas continuadoras. Ignoro; sou apenas um pobre e velho homem do Minho.

Seja como for, a tia Julieta deixou alguns apontamentos de cozinha que foram preservados ao longo dos anos e unanime­mente considerados geniais. Eu entro pouco na cozinha e não conheço "os maravilhosos cadernos" (a expressão é de Dona Elaine, a governanta da casa de Moledo) mas imagino a tia Julieta provando e distribuindo manjares à mesa da sua casa da Foz, municiando de bênçãos uma família cheia de bom apetite. Penso que não se importava de ser amada por isso; gostava de comer e de ir a almoços de família, para os quais transportava tabulei­ros e travessas, marmitas com molhos, e onde – em surdina – explicava algumas das suas receitas. Ninguém acreditava nessas descrições nem nas fórmulas dessa alquimia culinária; as senhoras desconfiam muito umas das outras e é natural que ela apre­ciasse aquela espécie de jogo em que era admirada pelos pratos que cozinhava e, simultaneamente, alvo de inveja e de des­consideração. Suportava tudo com um sorri­so, como se compreendesse o alcance da expressão "natureza humana".

Os meus irmãos comovem-se ao lembrar a 'gentillesse' da massa tenra e a arte suprema representada pelo seu arroz de pato, uma obra paciente e memorável. Eu recordo — além de tudo isso – o ar guloso, a forma como as pupilas se dilatavam benignamente à hora das refeições, e até os seus juízos cheios de ironia sobre a cozinha das suas irmãs e cunhadas. Nesse mundo feminino, sem marido (que morreu elegante, ligeiramente magro, sem apetite) e sem obrigações diárias, ela fazia da cozinha um palácio prazenteiro e dedicado às grandes revelações que saíam dos fornos e das panelas. A tia Benedita nunca lhe perdoou ter ficado viúva mais cedo do que seria decente, apenas aos quarenta anos, quando um resto de juventude se manifesta em pequenas indecisões e entre as rugas do rosto; mas se havia culpas a atribuir, elas deviam calhar ao tio Duarte Miguel, que decidiu penar em África durante os anos de juventude, numa comissão, e contrair uma malária que o deixou fraco e imprestável para os grandes esforços do matrimónio.

O tio Alberto, seu sobrinho e gastrónomo de São Pedro de Arcos, insistia em visitá-la amiúde, diz-se que para obter algu­ma receita com que impressionar as suas visitas. Não era ver­dade. Um homem que recebe Don Álvaro Cunqueiro com ovos com chouriço e sardinhas fritas (o mestre galego achou subli­mes ambas as coisas) não procura impressionar as visitas; pro­cura antes conquistá-las, como é dever de todo o anfitrião; ovos com chouriço e sardinhas fritas são uma criação saborosa mas, servidas ao talento e ao apetite de Don Álvaro, são um gesto decisivo e condenado a ficar na memória.

in Revista Notícias Sábado – 3 Novembro 2007