sábado, fevereiro 24, 2007

A vida privada, ou a Holanda

A minha sobrinha Maria Luísa sugeriu, atrevida, que na Holanda se fumava bastante haxixe. A frase foi casual, proferida enquanto ajudava a pôr a cozinha em ordem. Não mne espanta: parece que durante o Verão, sobretudo, os meus sobrinhos se dedicam (ao fundo do pinhal) a cerimónias rituais para fumar haxixe, sob o pretexto de respirar o ar fresco das árvores ou apreciar a vegetação que tem crescido ao acaso – acrescentando a possibilidade de, suponho, apreciar a proximidade do mar. Eu não sei bem como processa o “acto contemplativo” propriamente dito, crepuscular, e ignoro “o facto em si”; como responsável pelo pinhal, limito-me a dizer que é um lugar agradável que tem resistido a anos e anos de neblina, humidade e calor, onde passeio uma vez por outra e que parece ter por missão impedir que alguém construa uma casa nas redondezas para eu deixar de ver o mar ao fundo. Nada é por acaso.

A informação vale como um suplemento a todo o manancial de conversas que sucedeu à apresentação da nova namorada holandesa do meu sobrinho Pedro. A internacionalização da família é um avanço mas não é a primeira tentativa. Ao longo dos anos, os Homem ensaiaram ligações amorosas e sentimentais a outras paragens – Brasil, Rússia, Pérsia, Espanha (abundantemente), França (naturalmente) ou até à Suécia. A Holanda é um território novo.

De todas essas histórias que circulam na chamada tradição familiar resulta que os cavalheiros acabaram por regressar ao redil da Pátria e à pobre intimidade da vida para cá das fronteiras. A Tia Benedita aguardava-os. Ou, então, quando a matriarca já não se encontrava entre nós, restava ao velho Doutor Homem, meu pai, consolá-los. Ou consolar-me, quando fui eu o protagonista.

Eram duas posições diversas e opostas acerca do problema: a Tia Benedita achava que lá fora estava um demónio disposto a perder-nos entre comunismo, luteranismo, devassidão e, pior, mulheres que falavam línguas estranhas que não se entendiam em Ponte de Lima; o velho Doutor Homem era francamente pela internacionalização, que achava um passo decisivo no caminho da civilização e da felicidade. Dona Ester, minha mãe, tentava remediar esse mundo onde a vagabundagem sentimental e os seus desastres causavam feridas inúteis e desprezíveis. Alguém tinha de manter um mínimo razoável de senso.
Nesse conflito surdo a propósito da história sentimental da família nunca se invocaram as pequenas contrariedades que o assunto causava portas dentro. A liberdade, costumava dizer o velho Doutor Homem, meu pai, é o lado de dentro da porta – o que significava que entre nós tudo estaria bem desde que não se exagerasse nos comentários. Ou seja: “o que não conheço, não existe”.

Hoje em dia diz-se bastante mal do “tabu”. Eu acho o “tabu” uma coisa apreciável e benéfica, independentemente da opinião que coloca a “civilização judaico-cristã” nas ruas da amargura, carregada de pecados e de traumatismos. Acho benéficos os tabus sobre o sexo e os desastres familiares, por exemplo – eles são a linha que delimita aquilo que é público daquilo que é estritamente privado. E, mesmo de entre as coisas que são estritamente privadas, há assuntos que só se comentam com algum esforço. Raramente comento a vida dos meus sobrinhos, tirando umas distracções a propósito de maneiras à mesa ou de leituras mal feitas.

Dona Elaine, a governanta de Moledo, não acha nada disto – ela supõe, como razoável observadora das nossas vidas, que há por aqui ciúme “da holandesa”. Ora, depois do almoço de há quinze dias, “a holandesa” (ela é a nova namorada do meu sobrinho Pedro) deixou um rasto de novidade que se assemelhou a um ligeiro escândalo. Isso acontece de tempos a tempos na vida das famílias. A minha sobrinha Maria Luísa achou-a expedita e alegre, o resto dos meus irmãos vê nela algumas possibilidades. São cálculos e expectativas. Na verdade, a chegada “da holandesa” constitui um suplemento de concorrência numa vida pacata e simples.

E eis como, mais tarde ou mais cedo, todos nos inspiramos na antiquíssima sabedoria da Tia Benedita.

in Revista Notícias Sábado – 24 Fevereiro 2007

sábado, fevereiro 17, 2007

Visitas recentes

O velho Doutor Homem, meu pai, considerava que só em casa se estava bem. Avesso a demasiados encontros sociais, fixando-se naqueles que eram estritamente necessários para que o mundo soubesse que continuava vivo e relativamente cordato, passava longas temporadas em casa. Nessa altura não havia tele­visão nem Internet, o telefone usava-se com a parcimónia da época, e – mesmo assim – o mundo existia com alguma notorieda­de. Não era uma surpresa, de resto: havia jornais, processos nos tribunais e o clima ameno do Porto. Dos jornais lia-se tudo. O meu pai lia os pequenos anúncios de batata de semente e a necrologia das páginas de 'O Primeiro de Janeiro', se bem que se sentisse mais à vontade a comentar os editoriais da imprensa inglesa.

O fenómeno explica-se por isto: para não entrar em conflito com a Pátria, preferia julgar-se noutro país, de preferência numa Inglaterra que imaginava continuar igual à desses anos de antes da Guerra de 1939-45, onde os cavalheiros se vestiam para jantar e falavam em voz baixa e grave. Era o seu romantismo tardio. De modo que um editorial do 'Times' ou do 'Telegraph', apesar de ser lido com cerca de uma semana de atraso, ou mais, concedia-lhe um momento de liberdade quase absoluta, ilustrando-o (e a nós, que o ouvíamos) sobre as minudências discutidas nos Comuns, sobre os receios das chancelarias ou acerca da estreia de um espectáculo que nunca veríamos. Houve um ano em que discorreu mesmo sobre os títulos atribuídos por Sua Majestade, protestando com energia quando soube que um vetusto baronete de Suffolk, mais tarde visconde (não sei se de Andover), tinha sido agraciado com a Ordem da Jarreteira. "É como se promovessem o Leitão da Silva." Leitão da Silva era a forma generosa como, em circunstâncias mais alegres e irresponsáveis, os dois ou três membros mais letrados da família se referiam a Garrett.

Dona Elaine, a governanta de Moledo, que ignora a existência da Ordem da Jarreteira e nunca leu um soneto de Garrett, acha-me uma cópia – para pior, e desbotada - do velho doutor Homem, meu pai, culpando-me fre­quentemente de viver noutro mundo. Não por estas palavras, mas eu enten­do a acusação. "O senhor doutor, com esta idade, ainda se surpreende." Ela refere-se aos meus ares de espanto acerca da vida dos meus sobrinhos e à sua vida sentimental. Ambos – eu e dona Elaine – sabemos que as coisas são como são, mas cabe-me manifes­tar algum espanto ou fingir certa sur­presa. Nesta matéria, alguém tem de manter a pequena barreira da hipocrisia e a coragem de não deixar cair todos os tabus; pela idade, cabe-me a tarefa. Ninguém me leva a mal e a vida corre serenamente, encolhendo os ombros, relegando-me para o meu posto de matusalém minhoto, anterior à tragédia do 'Titanic' e aos romances de Carlos Malheiro Dias.

Num almoço de domingo, a visita da namorada do sobrinho Pedro foi o motivo da minha última actuação como guardião dos valores do século XIX anteriores ao Ultimatum: ela é holandesa. A nossa Holanda não é a terra visitada pela curiosidade de Ramalho Ortigão, que achava muitas virtudes no país dos pólderes, mas a tia Benedita não autorizaria a sua presença, recordando que um tio afastado (era escrivão e secretário nomeado pelo governo para Olinda) perecera nos arredores do Recife, assistindo à invasão dos Oranje e à traição de Domingos Fernandes Calabar. O almoço foi agradável e serviu para que a minha vaidade se atrevesse a comentar os museus de Amesterdão e a beleza da Frísia, sua terra natal (a falar verdade, a ilha de Ameland). Comentou-se que a holandesa me seduzira ou que eu me deixara seduzir pela jovem investigadora de biologia, que falava um português doce e solu­çado, com o léxico no seu lugar.

Parece que a tinham convencido de que eu era o patriarca vigilante de uma família ultramontana que guarda e venera o retrato dos seus reis. Ah, se se soubesse a verdade! O Pedro está feliz e em breve, como suponho, aprenderá as primeiras palavras em neerlandês, por­que os portugueses não podem ouvir uma língua que não se jul­guem, logo, talhados para se traduzirem nela. À despedida, Isabelle ainda me disse que a sua família gostaria muito de me conhecer por se interessam por assuntos de história. E de repente senti-me um conservador de museu, observado por frísios que vêm verificar como eram os contemporâneos do senhor príncipe Maurício de Nassau.

in Revista Notícias Sábado – 17 Fevereiro 2007

sábado, fevereiro 10, 2007

Recordações como a flor da japoneira

Quando o século entrou na era industrial, o meu avô Alfredo estabeleceu que a maior obra de engenharia do seu tempo – e que garantiria todos os recordes até ao tempo dos seus netos – continuaria a ser a Linha do Douro, que ligaria o centro do Porto às escarpas portuguesas de Barca d’Alva e às encostas de La Fuente de San Esteban.

Periodicamente partia para o vale do Douro carregado de pastas com “a escrita”, e regressava uns dias depois munido de cestos de fruta e de perdizes. Dizia-se, por graça, que da estação de São Bento, no Porto, à Quinta da Barroca, em Barca d’Alva, o avô Alfredo podia pernoitar na maior parte das quintas do vale desde que houvesse apeadeiro.

A sua vida de administrador de propriedades, em vez de limitá-lo às paredes de um escritório e às prateleiras de letras, livranças e abonos, pô-lo em contacto com o mundo e obrigou-o a aprender inglês na categoria de autodidacta, o que lhe permitiu folhear o “Telegraph” e tentar levar os descendentes a acreditar na suposta superioridade da cultura inglesa. Havia uma distância fatal entre os negociantes ingleses e irlandeses do Porto e o manuseamento dos textos do Doutor Johnson, mas a ligação, se não existia, acabou por fazer-se devido à teimosia do meu avô. O velho Doutor Homem, meu pai, visitou Londres várias vezes e permaneceu-lhe fiel como a “cidade do espírito”, por contraste com a pátria, onde ele via o espantalho napoleónico a modelar a administração do Estado e as misérias da francofonia a modelar a cabeça dos intelectuais.

De alguma maneira, o velho Doutor Homem, meu pai, incorporou todos os defeitos das burguesias e do racionalismo do Porto, moldado pela penumbra do céu e pela chuva que caía nas suas ruas de granito escuro. A sua vida intelectual era um luxo permitido pela família; a moeda de troca eram viagens e temporadas de preguiça. As viagens levavam-nos a hotéis e cidades com museus, lojas e restaurantes, em Espanha, França e – por duas vezes – em Inglaterra; a preguiça depositava-nos em Ponte de Lima para um a dois meses de Verão, onde as tardes eram invadidas pelos seus discos e pela desarrumação na biblioteca do velho casarão miguelista – onde se misturavam, nos sofás e nos cadeirões, jornais da época e livros que convidavam à sesta. Se me contagiasse, algum dia, a tentação (cada vez mais frequente nos portugueses) de escrever um romance, eu teria nos anos de ouro de Ponte de Lima um cenário atraente e luminoso.

A vida foi-me fácil nesses anos; poupado às atribulações do casamento (mas também ao seu conforto) e da economia familiar, uma segunda adolescência prolongou-se até aos meus trinta anos, e as minhas preocupações essenciais eram, no fundo, a epistolografia e o guarda-roupa. O temperamento ajudava. Eu era preguiçoso. Aprendi o essencial – e o essencial era um certo conformismo e a vontade de aproveitar a felicidade do tempo. Coleccionei, portanto, recordações que hoje uso como a flor da japoneira numa lapela fora de moda.

Quando pela derradeira vez viajei com o meu avô até Barca d’Alva, ele já não era administrador de quintas nem se correspondia com os seus amigos ingleses. Aquele tempo tinha acabado. Lembro-me que olhou melancolicamente (o que nele era raro, como em todos os Homem, que desde cedo era educados para não se levarem a sério) para os túneis e pontes de ferro por onde o comboio atravessava os afluentes do Douro, e lembrou “a maior obra de engenharia do seu tempo”. Mesmo sabendo que se tratava de pura ilusão, considerámos ambos que Barca d’Alva, as quintas do Douro, Ponte de Lima com os seus freixos escuros, o velho Porto, o Minho pitoresco, Moledo e o seu mar friorento constituíam os pilares de uma geografia onde tínhamos crescido e depositado esperanças confortáveis. Esse mundo também acabou, com o tempo.

Penso nisso porque, com a Primavera que há-de chegar, abriremos a casa de Ponte de Lima para arejar os corredores e as salas de sobrado de madeira. Os meus sobrinhos consideram esse ritual (antes da Pascoela) uma obrigação moral. No fundo, acho que têm pena da solidão do senhor Dom Miguel, cujo rosto triste e perturbado naquele retrato ao fundo do corredor do piso térreo lembra que os derrotados também têm direito à vida. Foi o que nos salvou. De contrário, seríamos muito menos interessantes.

in Revista Notícias Sábado – 10 Fevereiro 2007

sábado, fevereiro 03, 2007

As coisas da política

A família passou ao largo da Monarquia do Norte e das suas avarias, como passaria, mais tarde, despercebida noutras tempestades locais. Já expliquei, em tempos, como os Homem se converteram "a filósofos" (a expressão é do 'Eusébio Macário', de Camilo) e se desinteressaram pelas coisas da polí­tica. Não exactamente assim, mas de forma parecida: o velho doutor Homem, meu pai, nunca abandonou a sua rotineira perseguição, surda e cómica, ao lente de Coimbra, sobretudo a partir do fim da Segunda Guerra. Mas o espírito da intervenção dos Homem na política, esse, terminou com a tia Benedita, a matriarca da família a quem se deve a continuidade do espírito dos Homem de há dois e três séculos. Só ela se atreveria, se não estivesse em Ponte de Lima, a pendurar colchas à janela quando passou o desfile dos militares que proclamaram a Monarquia do Norte, que durou um mês chuvoso.

Há uma razão para as coisas serem assim. Esse "espírito de há dois e três séculos" e, portanto, as guerrilhas da tia Benedita explicavam-se, segundo o velho doutor Homem, meu pai, pelo facto de "agora se trabalhar mais". O que queria dizer, no fim de contas, que antes das escaramuças de Oitocentos os Homem viviam dos seus rendimentos e passavam bem. Júlio Dinis, ai de nós, falava do assunto nos 'Fidalgos', misto de romance e de panfleto que na família passou por ser obra cómica. Não era. Trata-se de uma tragédia sem consequências, que autorizou a substituição dos fidalgos do Cruzeiro e dos frades inactivos pelos baronatos e demagogos do seu tempo.

Deixemos, no entanto, que Júlio Dinis continue adormecido – ele pertence ao nosso modesto Olimpo literário na categoria das "ingenuidades". Tanto o meu avô como o meu pai se entregaram, disciplinada­mente, aos negócios da família depois de terem descoberto que o mundo tinha mudado com o século. O meu avô (os seus con­tactos com os proprietários do Douro e com os negociantes do Porto transformaram-no num anglófilo por motivos profissionais) foi, durante uns tempos, confidente do dr. António Granjo – eram ambos gente de província, tinham sotaque e vestiam como os pais de antigamente, com colarinhos e ternos escuros, bengalas e chapéus de feltro de São João da Madeira. O velho doutor Homem, meu pai, achava que "o regime" não era a única solu­ção – e só deixou de se encontrar com o dr. Cunha Leal depois de descobrir tardiamente que o exilado da Corunha tinha aí recebido Afonso Costa, o demagogo (que se deliciava a ver cinema nas salas locais com o antigo presidente Bernardino Machado). Os seus passos encontraram-se apenas mais uma vez, espiritualmente, quando o dr. Cunha Leal foi ao cemitério prestar uma última homenagem a Paiva Couceiro. Não escondo que Paiva Couceiro foi uma espécie de culpa per­manente dos Homem durante mais de um quarto de século.

Abandonado à sua sorte, o homem foi um aventureiro que arrastou con­sigo, pelas terras de Trás-os-Montes e da Galiza, a penúria dos vencidos. Ele teria sido um dos últimos heróis da tia Benedita, se não se visse, à partida, que o seu combate estava destinado à humilhação. Com Afonso Costa ou com Sidónio, com Pimenta de Castro ou com "a situa­ção", Portugal cá se arranjaria. Portugal cá se arranjou durante quase cinquenta anos, com medo das polícias da República (sempre desculpadas), primeiro, e "do regi­me", depois. Política para quê?

Independentemente da vontade do dr. Salazar, para quem não eram necessários mais políticos além dos que rodeavam o seu gabinete, um homem de bem evitava meter-se nesse mundo. Trabalhava, enriquecia, sustentava a família, evitava ter ambiçõ­es. Era um desígnio medíocre e, em alguns casos, prejudicial à pátria, mas compreensível. Isto explica a razão de não haver muita gente disponível hoje em dia – e de, a havê-la, não se apresentar tão ilustre ou ilustrada como nos faz falta. Recentemente, dando conta destas inquietações à mesa de domingo, uma das minhas irmãs lembrou-se de que eu devia ser reconduzido ao meu estatuto: "O António, agora, deu-lhe para disparatar." Geralmente atribuo estas coisas ao clima.

in Revista Notícias Sábado – 3 Fevereiro 2007