domingo, fevereiro 24, 2008

Por causa da gastronomia

Poucas vezes, nas minhas memórias, mencionei a Tia Julieta. Salvo erro, apenas uma, mais para elogiar-lhe os dotes culinários do que para festejar o seu estoicismo. Ora, apesar de tudo ela era estóica. Viúva aos quarenta, exactamente como as viúvas dos romances do século XIX, foi a partir dessa data que iniciou uma peregrinação pelos segredos da grande gastronomia da província. Essa actividade reservou-lhe a simpatia e a eterna gratidão dos nossos corações, que são egoístas e fáceis, mas despertou o ciúme entre as senhoras da família. Uma viúva na cozinha tanto abre as portas para a tempestade da inveja feminina – como suscita labaredas de paixão nos homens.

A Tia Julieta ficou entre nós até ao final dos anos oitenta, envelhecendo suavemente e sem necessidade de dieta para manter uma elegância adorável. O Tio Alberto, o outro gastrónomo da família (ficou conhecido por, na sua casa de São Pedro de Arcos, receber Camilo José Cela com um almoço de sardinhas fritas e ovos com chouriço), achava-a condenada à eternidade como recompensa pelo arroz de pato que assinalava o período final da Quaresma, e pela sua receita de pescada dourada que tentou obter – sem sucesso – durante toda uma vida de espionagem culinária.

Há personagens que se transfiguram na nossa memória pelo prazer que obrigam a recordar. Hoje em dia, é um perigo; no caso da Tia Julieta, o problema eram os colesteróis magníficos e proibidos, ou os pratos que vinham inquietar aquela parte menos habilidosa e criativa da família.

A minha sobrinha Maria Luísa é a mais ousada das gastrónomas actuais dentro de portas. Atribuo o facto a alguns anos de estômago dilacerado pela informalidade esquerdista, o que a leva a procurar recompensa na mesa (mais do que na cozinha) e na evocação dos grandes banquetes em que os Homem de antigamente participaram, como cozinheiros ou na qualidade de comensais. A ex-marxista considera a insinuação de mau gosto, mas, felizmente, não lhe vejo sinais de se alimentar com frugalidade. Para a amargurar, lembro-lhe que o seu pai (meu irmão) ia perdendo o 25 de Abril por causa de uma caldeirada de cabrito que estava aprazada para Pontevedra. Quando deram por ele estava a instalar-se no carro, o que seria a primeira fuga para Espanha em tempos de revolução. Mesmo sem saber.

in Domingo - Correio da Manhã - 24.02.2008

domingo, fevereiro 17, 2008

O arbítrio das coisas

Antigamente, os assuntos de família tratavam-se na inti­midade do lar. A expressão é ga­rota e fadista, porque já não há "intimidade do lar" e a expressão usa-se para provocar um ligeiro esgar vagamente aparentado com o sorriso.

O velho Doutor Homem, meu pai, considerava que a educação dos seus filhos (éramos cinco) competia à ordem estabelecida dentro das paredes de casa. Con­vinha que eles (nós) tivessem boas digestões, bom carácter, fossem criados na presunção de que exis­te um Dia do Juízo e deixados ao arbítrio das coisas - para que aprendessem.

O "arbítrio das coisas" já se não usa desde que a 'puericultu­ra' se transformou em 'pedagogia' e a classe média inventou a exis­tência do 'trauma'. Os pedagogos leram Rousseau e aplicaram-se na sua tradução para efeitos práticos, esquecendo que o filósofo se endividava, abandonando os filhos e maltratando a família, até abandoná-la para se aproveitar da fortuna de uma amante. Na elegante linguagem erudita da Tia Benedita, seria "um tonto".

A minha sobrinha Maria Luísa, que vota esporadicamente no Blo­co de Esquerda quando as eleições não a afastam da praia, em Moledo, desencantou-se com a pedagogia e berrou com os dois filhos, proi­bindo-os de ver televisão. "Veja lá, não os traumatize", murmurou Dona Elaine, que não desviou os olhos da revista espanhola onde aprende o essencial sobre o 'high-society' do Mundo. Ela é a gover­nanta da casa de Moledo, onde a família se reúne aos domingos para o almoço familiar. Sabe pou­co de pedagogia mas aprende os rudimentos da vida contemporâ­nea com os diálogos das telenove­las portuguesas.

Maria Luísa compreendeu a iro­nia da observação. Dona Elaine, sim, estava traumatizada porque os rapazes cavaram trincheiras em redor dos canteiros das tulipas (a sua flor preferida, tirando as japoneiras), cujas pontas rebentaram na se­mana passada. "Eu quero lá saber dos traumas, vou in­terná-los num colégio ou enviá-los para adopção."

"Fico à espera", respon­deu a governanta. Ela sabe que o velho Doutor Homem, meu pai, que odiava os gladíolos e lí­rios brancos do jardim de Ponte de Lima, dava - aos filhos e sobrinhos - dez tostões por cada rebento arrancado e destruído. Manteve--se sempre na clan­destinidade, deixan­do-nos "ao arbítrio das coisas" e en­frentando um julga­mento por bandi­tismo botânico.

in Domingo – Correio da Manhã - 17 Fevereiro 2008

domingo, fevereiro 10, 2008

Conhecer mundo

O mundo dos velhos não oferece garantias – depreendi isto depois de completar oitenta anos, e considerando que o mundo não mudara muito desde que o velho Doutor Homem, meu pai, regressara à Pátria depois de uma temporada inglesa. Nesses anos de antes da Guerra, quando Londres ainda não tinha sido bombardeada nem a França invadida, Portugal era um país comezinho, e continuaria a sê-lo por anos e anos.

O meu pai teve a infelicidade de conhecer a Inglaterra desses anos de relativa prosperidade, o que lhe acarretou dissabores mas lhe desenvolveu a imaginação. Depois de gastar as derradeiras libras no seu guarda-roupa de ‘tweed’ (cujo corte diferia bastante do alfaiate familiar dos Clérigos, onde os Homem de duas gerações mandaram apurar as suas lãs, fazendas e cheviotes), Portugal devia parecer pequeno para quem leu os jornais da manhã antes de passear na Saville Road observando como vestiam os ingleses da City, hoje um fenómeno arqueológico. A temporada inglesa foi ordenada pelo meu avô, administrador de quintas e vinhedos no vale do Douro, que achava que um rapaz devia conhecer mundo, mesmo que os mapas não fossem além de Barca d’Alva, onde ele conheceu Guerra Junqueiro, com quem duas ou três vezes se correspondeu.

A lição ficou aprendida e, por várias vezes, com Dona Ester, minha mãe, ministrando agasalhos e o meu pai servindo-nos geografia, os Homem partiram para lá das fronteiras mal o aroma da “época balnear” atravessava os areais de Afife ou os pinhais de Viana. Para o velho Doutor Homem, meu pai, ter maneiras à mesa e ter conhecimentos de história pátria não valia de nada se não houvesse um perfume de eternidade a envolver o conjunto. Mal chegava a Primavera, desdobravam-se mapas na sala de jantar da velha casa portuense; o velho advogado acreditava que viajar era uma experiência decisiva, quer a rota nos levasse a Biarritz ou apenas servisse para mostrar as enseadas de Vigo.

A Tia Benedita, a matriarca da família, achava supérfluo o esforço. Abrigada em Ponte de Lima, no casarão onde se conservava o retrato do senhor D. Miguel, a senhora admitia que talvez houvesse diferenças, mas que a imoralidade era igual em todo o lado. Nessas alturas, o meu pai não respondia. Limitava-se a fechar os olhos, sonhador. Um devasso conhece-se pelo sorriso.

in Domingo – Revista do Correio da Manhã – 10 Fevereiro 2008

domingo, fevereiro 03, 2008

Évora Monte

A Tia Benedita, matriarca dos Homem, foi a guardiã do ultramontanismo da família. Nas vésperas de morrer, na mesma altura em que já se dançava abundantemente o ié-ié e Mary Quant vinha nas primeiras páginas dos jornais, insistia em que o dr. Afonso Costa se dirigia a Braga para confiscar os tesouros das igrejas. Avisada (pelo velho Doutor Homem, meu pai) de que o demagogo republicano já tinha morrido há muito tempo, ela tranquilizou-se momentaneamente mas não cedeu no essencial: “Isso é o que menino pensa.”

Em Ponte de Lima, onde ficava o casarão da família, uma velha composição de granitos e trepadeiras tentaculares, as notícias chegavam sem filtro, mas com moderação. Tendo perdido há muito as esperanças em ter alguém que lhe sucedesse na guarda da tradição política dos Homem de outras eras (o que ela atribuía à devassidão, à República e à alimentação moderna), a Tia Benedita abrandou o seu rigor, mas não deixava de dar opiniões. O velho Doutor Homem, meu pai, que chamava pantomineiro ao dr. Salazar, tratava-a com as honras que se deviam a uma matriarca de grandes famílias, e limitava-se a defendê-la de imaginários pedreiros-livres, regicidas e inimigos letais. Este anacronismo fantástico era uma obra de ficção alimentada pelo desinteresse da família, que gostava de se divertir com coisas sérias.

Hoje, passados esses anos, recordo a Tia Benedita como um monumento que resistiu às intempéries. Entre sobrinhos que fumam haxixe e irmãs e irmãos que passam férias na praia, gosto de recordá-la em voz alta como uma espécie de perfume do tempo, desajustada e feliz com os seus fantasmas, perseguindo as memórias do passado e recusando-se a ouvir o nome de Évora Monte, onde o general Azevedo e Lemos assinou os papéis da derrota. De certa maneira, o país inteiro havia de considerá-la uma velharia, útil para menosprezar-lhe o carácter e os destemperos. O país gosta muito de pantomineiros e abomina afrontamentos, porque é de meias-tintas; quando pode, elimina da História o nome dos vencidos, porque são incómodos e convém que não tenham virtudes cívicas. A memória da Tia Benedita é um ajuste de contas. Ela pertencia a outro mundo, certamente – é um mundo impossível e enterrado. Mas era o seu e vivia nele.

in Domingo – Revista Correio da Manhã – 3 Fevereiro 2008