domingo, outubro 26, 2008

Lírios brancos

A biografia da Tia Benedita é simples. Morreu quando a idade sobrava na sua contabilidade pessoal e deve ter partido feliz ou, pelo menos, tranquila. A minha sobrinha Maria Luísa achou, durante muito tempo, que o ‘miguelismo’ da matriarca da família a tornava imprópria como figura familiar recomendável num tempo em que só se é miguelista por herança. A pátria satisfaz-se muito com esse retrato a preto e branco onde há vencedores e vencidos e onde toda a glória cabe aos primeiros. Para os segundos, os vencidos – o esquecimento e a desonra. E, sobretudo, o silêncio.

Daqui, do Outono de Moledo, vejo-a ainda sentada – como uma velha senhora, elegante e severa – à beira dos seus lírios, no jardim de Ponte de Lima, banhada pela luz de Outubro e por uma música que ela decerto não ouviria, avessa que era às coisas demasiado profanas. É precisamente o seu anti-romantismo que faz da Tia Benedita uma personagem de romance, daquelas que entraria pela porta principal de ‘O Monte dos Vendavais’ ou de ‘Orgulho e Preconceito’ e figuraria na mais nobre das suas galerias.

Havia nela, justamente, a nobreza das grandes personagens atormentadas pela bondade que não conseguiam transmitir. Essa timidez acompanhou-a até ao fim, mas poucos a entenderam. Desde então – a morte da Tia Benedita, ainda nos anos sessenta, é um marco essencial na vida da família – que os Homem se entregaram ‘aos tempos modernos’, libertos que ficaram dessa memória da pátria do Antigo Regime, anterior à Concessão de Évora Monte e à reforma da ‘ortographya’. Maria Luísa redescobriu-a, como figura tutelar da família, quando – abstraindo-se do ‘miguelismo’ – se deu conta do carácter heróico da sua resistência aos ‘tempos modernos’, justamente. A Tia Benedita escolheu o caminho mais difícil, o mais inusitado, o mais reservado para a glória e a aceitação. O velho Doutor Homem, meu pai, desculpava-lhe todos os excessos, tirando o gosto da senhora pelos lírios brancos, que ele achava um despropósito pouco consentâneo com a paisagem de Ponte de Lima, verdejante e pincelada de ruínas. Bem vistas as coisas, não eram apenas os lírios que estavam desajustados com a paisagem – o mundo também não se adequava muito às derradeiras manias da Tia Benedita. Mas foi uma corajosa resistente, até ao fim.

in Domingo - Correio de Manhã - 26 Outubro 2008

domingo, outubro 19, 2008

Toda a verdade

A minha sobrinha acha que nem toda a verdade é útil. É uma novidade que agradeço ao destino – porque as novas gerações, educadas no respeito pela "transparência", criaram para si próprias a ideia de que tudo se diz e de que tudo merece ser dito. Vindo do século passado (a ideia de "século passado" leva-me à descoberta da penicilina e às primeiras viagens do paquete Niassa), habituado a anotar as catástrofes mais do que os sucessos do género humano, essa ideia nunca me pareceu uma ideia – mas um probema.

"A verdade é boa para quem pode suportá-la." O velho Doutor Homem, meu pai, era avesso a grandes princípios e à sua pompa, mas tinha o vício da frontalidade, coisa que lhe era permitida porque pagava as suas contas e não devia aos bancos. Ele considerava que "a verdade" era uma "coisa moderna", muito equiparável aos romances sem diálogos e às religiões da multidão.

Foi, portanto, com surpresa, que ouvi a minha sobrinha Maria Luísa defender que nem toda a verdade era útil. Ela atravessou dois divórcios e algumas confissões de desamor, elementos muito educativos mas que deixam as suas marcas. Num mundo em que tudo se diz, alguma verdade acaba por magoar. A Tia Benedita, essa inesgotável fonte de exemplos para o reaccionarismo da famíia, recusava-se a dar conselhos porque – dizia – não era uma sentimental. Mas isso é uma condição que se aprende com a juventude e que supõe um carácter frio e pouco contemplativo. Com a revolução dos costumes e a ideia de que deve haver "transparência" só sobrevivem os que estão mais preparados para suportar a rejeição.

Um amor que fica no passado; um familiar que nunca se esquece, uma palavra que fica por dizer, uma dor que regressa de tempos a tempos. A nossa vida é feita de muitos subentendidos, e a verdade não é propriamente o bálsamo de que as nossas feridas necessitam para cicatrizarem.
O Tio Henrique, o bibliófilo de São Pedro dos Arcos, lembrava que o essencial era manter a capacidade de se perder com dignidade no rasto de uma aventura; o resto eram minudências que interessam a literatura de senhoras e os efeitos da cinematografia, porque a vida é bem mais simples e diz respeito às pequenas coisas que se levam para a eternidade. Por isso, ao ouvir Maria Luísa, limito-me a sorrir. Ela descobriu que há vida depois de nós. Eles, os vindouros, que se tratem de apurar a verdade.

in Domingo - Correio da Manhã - 19 Outubro 2008

domingo, outubro 12, 2008

O riso da tia Guilhermina

A Tia Guilhermina — nunca antes falei da Tia Guilhermina. A virtude principal das velharias é a de se conservarem por mais tempo do que o necessário, coisa que acontece com os álbuns de fotografia, relíquias onde vamos todos recordando os nossos mortos. Mais: onde vamos recordando os vivos de cada época, rodeados daquilo que era o essencial – uma família, um céu claro, uma roupa que já se não usa, uma ventania que despenteia um velho tio, uma árvore que entretanto desapareceu, um muro que se transformou em ruínas.

Pois a Tia Guilhermina ria muito. As fotografias que se mantêm nos nossos arquivos – esses álbuns de glórias – mostram-na ora apenas sorridente ora risonha mas muito raramente de semblante carregado. A ideia do "semblante carregado" é uma das grandes características dos Homem de antanho, vigiados pelo peso e pela responsabilidade da História ou pelas recordações de algum sofrimento, tal é a ausência de riso nessas fotografias. Antigamente ria-se com parcimónia; antigamente chorava-se por amor – e até se sofria; antigamente, as maravilhosas tias da família (as de Ponte de Lima à cabeça, com a Tia Benedita transformada em matriarca inquestionável, mas também as dos Arcos, de Viana ou de Alvito, no longínquo Alentejo), sussurravam e eram educadoras inflexíveis; antigamente, o Outono era tépido e a "época balnear" despedia-se de nós com cerimónia, às arrecuas, com uma derradeira vénia melancólica, desprendendo-se suavemente das folhas de calendário. A Tia Guilhermina, nessa ordem perfeita e severa (até a melancolia tinha uma aura de severidade conservadora) era uma excepção feliz e ruidosa, carregada de boas memórias. Suponho que a minha família lhe recorda – ainda hoje – a generosidade, o arroz de pato e o assado da Páscoa, as suas histórias de viagens que cruzavam o pequeno planisfério do Minho, os jardins da sua casa dos Arcos de Valdevez. Eu recordo o riso. Tudo isso – e o riso. É um riso que atravessa os anos, que dobra este século, que me lembra um tempo de vivos e de felicidade sem angústia, certamente instalado apenas no passado como um sinal para os vindouros.

A falar verdade, nessa altura não existiam vindouros. A palavra desapareceu das nossas conversas; ninguém quer ser do tempo que há-de vir. Só o riso da Tia Guilhermina se prolonga como uma bênção da eternidade.

in Domingo - Correio da Manhã - 12 Outubro 2008

domingo, outubro 05, 2008

Os casamentos

Há, segundo suponho e os jornais me informam, uma série de polémicas, muito tépidas e coradas de vergonha, em relação aos casamentos entre pessoas do mesmo sexo. Habituado à passagem dos anos, a novidade não me choca nem me deixa eufórico – pelo contrário, a maior parte das mudanças merece-me cada vez mais indiferença e misericórdia. A ideia de que 'as mudanças' podem mudar o Mundo (para melhor, suponho) requer não apenas uma prova muito mais substancial como também um atestado da sua utilidade.

Voluntariamente afastado das alegrias do matrimónio (que me pouparam o conhecimento de ciências modernas como a puericultura ou os hábitos sofisticados da vida das cidades, como a ida ao psicanalista), olho a questão com alguma distância e relativa curiosidade, embora me pareça que quando se fala de família já não é de família que se fala mas de um ‘ajuntamento doméstico’ movido por interesses de natureza muito ligeira. A minha sobrinha Maria Luísa, que vota no Bloco de Esquerda em Braga (mas que se inclina sobre o lado direito das coisas quando se aproxima de Moledo), considera que eu não sou claro quanto à matéria e que 'a família' e 'os afectos' mudaram; por outras palavras, que eu sou contra o casamento de homossexuais. É verdade.

Não fui educado no respeito pela ordem das coisas em vão. Passei vinte anos refugiado na província, longe da vida sofisticada das cidades – tudo para que me não incomodassem. E, afinal, com que finalidade? Para que, de repente, a minha sobrinha, mãe de dois sobrinhos-netos que se entretêm a arrancar a folhagem dos hibiscos, atravesse o corredor desta casa de Moledo (o que divide a cozinha da sala de jantar) a fim de me chamar 'múmia' pelo simples facto de, nos últimos dez, ou – vá lá – quinze anos, não me ter debruçado sobre o magno problema do casamento de homossexuais.

O velho Doutor Homem, meu pai, achava intolerável que o Estado (na época representado pelo espectro magro e fugidio do dr. Salazar) se imiscuísse nas vidas e costumes dos privados e das famílias. Acharia também intolerável que o Estado (representante, para todos os efeitos, das multidões da democracia) lhe impusesse a aceitação daquilo para que não estava preparado. Pessoalmente, ainda, sou a pessoa menos indicada para discutir o tema do casamento: nunca casei. Mas defendo o direito de qualquer um à infelicidade.

in Domingo - Correio da Manhã - 5 Outubro 2008