domingo, abril 26, 2009

O pior nunca aconteceu

O velho Doutor Homem, meu pai, sobreviveu ao 25 de Abril. Como havia notícias da revolução, adiou o seu passeio matinal e levou guarda-chuva. Ao longo da sua vida conspirara em silêncio contra o regime – muitos não compreendiam a existência de um conservador (a que faltava um país onde se pudesse ser conservador) que abominasse o dr. Salazar e o seu regime, mas nem o dr. Salazar nem o seu regime estavam feitos à sua medida. Educado por si mesmo, viajado, anglófilo e demasiado ocupado a ler a sua biblioteca e a sustentar a família, queixava-se ‘da clausura’ – o 25 de Abril despertou nele um breve entusiasmo pela política, mas, desconfiado como os Homem de antanho, suspeitou nuvens negras naquele general que ostentava monóculo e lia sem pronúncia.

O tempo deu-lhe razão mas não o deixou assistir ao segundo ano da democracia; Novembro foi um mês demasiado cruel e a idade (os Homem morrem tarde) pesou de repente sobre os ombros do velho céptico.

Na sua última viagem entre Ponte de Lima e o Porto, num Outono fulgurante e amarelecido, cheio de rumores e de conspirações, profetizou que o velho casarão de família, no Minho, ainda viria a ser-nos útil com a chegada do comunismo. Porém, os Homem foram sempre gente discreta, habituados à hipocrisia que os fez sobreviver às derrotas em silêncio – elas fortaleceram o carácter mas afastaram-nos da ribalta, fazendo-nos assistir ao fim das coisas com a sensação de não participar do espectáculo. Voltados para dentro, ensimesmados e melancólicos em muitas circunstâncias, os Homem foram sempre fiéis às suas velharias, mesmo se estas já pouco significavam para os outros. A Tia Benedita, o meu avô paterno e o velho Doutor Homem, meu pai, foram pilares de um mundo que existiu ao mesmo tempo que o resto das coisas, mas sem se tocarem realmente. Conformados com o andamento do universo, limitaram-se a aprender os nomes dos poderosos sem lhes dedicar afeição e, para manter alguma saúde mental, sem alimentar uma misantropia que parecia inevitável.

Trinta e cinco anos depois, recordo os avisos do céptico da família, preparando-nos para mais uma travessia do deserto como se descrevesse – com Dante – a entrada nos portões do Inferno. A democracia não nos transformou nem nos desiludiu. O Verão de 1975 apanhou grande parte da família em Ponte de Lima, comentando as notícias e preparada para “o pior”. O pior nunca veio e, se viesse, não saberíamos reconhecê-lo. Nas nossas recordações, passadas de geração para geração, “o pior” chegara várias vezes e cá continuávamos.

in Domingo - Correio da Manhã - 26 Abril 2009

domingo, abril 19, 2009

A vantagem da Democracia em Moledo

Há uns anos, a minha sobrinha Maria Luísa ficou chocada quando lhe expliquei, orgulhoso e inconsciente, que Moledo – onde vivo há cerca de vinte anos – era um dos lugares menos democráticos do país. Essa revelação impopular deixou-a consternada. Maria Luísa, que era então a eleitora mais esquerdista da família, suspirou e culpou o retrato do Senhor Dom Miguel, uma das glórias da família (guardado, como o leitor sabe, no casarão de Ponte de Lima), pela sobrevivência de reaccionários a norte do Zêzere e até à fronteira de Valença ou ao Cantábrico. Ora, o príncipe proscrito não tem a ver com o assunto; a democracia é uma novidade na história humana e nem todas as sociedades se regem pelos seus maravilhosos princípios. Ou seja, ainda: o destino final da humanidade não é viver em democracia mas, como repetia o velho Doutor Homem, meu pai, ir sobrevivendo às novidades que prometem a nossa felicidade.

Felizmente que existe democracia – e, por extensão, praias muito mais democráticas. A praia de Moledo tem água fria; o vento do crepúsculo é cortante durante a Primavera e áspero no resto do tempo (tirando seis ou sete tardes de Verão); a ondulação do seu mar, longe de ser amena e acolhedora – como nos bilhetes postais dos trópicos –, é agreste e cai com violência na derradeira rampa de areia; durante a maior parte das manhãs da ‘época balnear’, há uma suavíssima neblina (ou ‘nevoeiro implacável’, segundo os meus sobrinhos) que, beneficiando os entusiastas de paisagens, afasta os que desejam bronzear-se. Esta conjugação de factores bastaria para barrar os portões de Moledo aos veraneantes; mas, ainda assim, há gente que resiste. Ou seja, há quem não se importe de trocar o Algarve tépido, sensualista e mediterrânico pelo clima levemente invernal das manhãs do Verão de Moledo. Há, finalmente, quem não se reúna sob o pavilhão do Grande Verão do sul, quente e democrático, e mantenha o hábito de continuar a enregelar nas praias de Moledo.

Ora, quem é essa gente que bravamente se recusa a juntar-se à multidão? Meia dúzia de amotinados contra a democracia. A democracia impõe a lei da maioria (e nada escrito exige que respeitem as minorias, à parte alguma misericórdia) e a maioria prefere entregar-se aos prazeres dos trópicos ou das praias da moda. Pois se é assim, Moledo é uma praia pouco democrática. Não tem nada do que a maioria das pessoas quer. Cheira a pinhal e a sargaço, ao nevoeiro da Galiza e a bronzeadores antigos. É uma velharia.

Espero, com isto, ter afastado alguns visitantes. Ai de mim, que ainda penso influenciar leitores.

in Domingo - Correio da Manhã - 19 Abril 2009

domingo, abril 12, 2009

Refazer o moral em Abril

Hoje em dia, a nossa Páscoa é sobretudo meteorológica. Deixou há muito de ser religiosa e associa-se mais ao desejo pagão e citadino de uma temperatura tépida, de um Verão que há-de chegar – Abril, o mês mais cruel (o velho Doutor Homem, meu pai, lia o seu Eliot com desconfiança e esforço, mas lia-o como uma herança dos seus imaginários ancestrais ingleses), transformou-se num portal para aquele Estio madrugador, tão querido de Moledo como o céu azul sobre a Ínsua. Reconheço a temporada pelos pinhais. Como botânico, faço o inventário de vasos e rebentos, da explosão de bolbos, da saúde dos hibiscos e, naturalmente – para repetir um ritual –, do aparecimento das flores da giesta nos caminhos que levam à praia.

Conheço esses caminhos por razões médicas, tentando aliviar os pulmões e despertar neles o desejo de continuarem a respirar. O pólen não me impede de procurar as veredas que, perto das dunas, percorro há anos com a teimosia de um velho. A minha sobrinha Maria Luísa obrigou-se a repetir essas caminhadas, julgando que assim ‘refaz o moral’. Ela acredita sinceramente nesta ideia, e declara que um pouco de exercício físico lhe poupa preocupações e conversas domésticas. Concordo, acenando – mas recordo que, em matéria de ‘refazer o moral’, os eremitas preferiam a quietude das montanhas e a imobilidade das grandes pedras onde tinham assentado musgos seculares.

Na verdade, vejo passar – ao sábado e ao domingo – multidões caminhando apressadamente junto da praia, mantendo um ritmo acelerado, braços e pernas a um só ritmo, transpirando e gemendo como um mecanismo a que é preciso emprestar afinações permanentes. As minhas caminhadas são, hoje, as de um velho. Não se destinam a ‘refazer o moral’ mas a impedir que as pernas enferrugem e que as digestões pesem. Aproveito a oportunidade para apreciar como a Primavera chegou a Moledo e se instalou nos pinhais, nas ruelas e nas duas esplanadas onde os meus sobrinhos se recolhem.

Passado o Inverno, as minhas irmãs descem até à beira do mar, menos decididas à sua emigração periódica para as Caraíbas ou para Brasil. O sol de Abril comove toda a gente e anuncia tardes conservadoras cheias de modorra e de grandes projectos. Nesta altura do ano, começam a circular folhas de calendário onde a família assinala as semanas que pretende delapidar em Moledo nos meses de Verão. Dona Elaine, a governanta deste eremitério, sorri à ideia e ganha novo alento (ela gostaria que em Moledo fosse sempre Verão). As coisas repetem-se. O mundo tem algum sentido, sendo assim.

in Domingo - Correio da Manhã - 12 Abril 2009

domingo, abril 05, 2009

A vida dos comboios (2)

O meu avô era um dos grandes frequentadores da ferrovia. Todos os meses ele rumava para o seu vale – o do Douro –, carregado com “os livros”. Ora, “os livros” ocupavam a maior parte da sua bagagem de viajante, embrulhados com o cuidado de um miniaturista, escondendo nas suas páginas os segredos do Vinho do Porto, sua grande paixão. Ao contrário do barão de Forrester, o meu avô não tinha aptidão para o desenho, preferindo traduzir a grandeza do Douro em números – os das vindimas, os das exportações, os das compras e vendas, os da riqueza acumulada e da moderação nos gastos. Administrador de algumas quintas do Douro, correspondente comercial de velhas companhias inglesas, ele funcionava como um barómetro familiar sobre o andamento da economia. Voltava dessas viagens carregado de cestos de fruta, cabazes com relíquias das hortas ribeirinhas – e histórias que, sendo confidenciais, não ultrapassavam nunca o umbral da porta. Ele visitava essas famílias e essas quintas com a cerimónia de um visitante aguardado com impaciência: com a minuciosa contabilidade dessas quintas ele transportava também um módico de civilização a que, nesses vales, só tinham acesso pela epistolografia, pela leitura de jornais velhos de semanas, ou – dramaticamente – pela fuga daquela geografia quase africana no Verão e próxima dos rigores polares quando chegava o Inverno.

O comboio era um instrumento da civilização. O meu avô pertencia ao tempo em que se aguardava um comboio, munido de “bilhete de cais” e com a solenidade da sobrecasaca e do chapéu. Em São Bento reunia-se um conciliábulo de desiludidos com a República e de desconfiados em relação ao Estado Novo. A família, esperta e amadurecida por várias derrotas, evitou sempre compromissos com o folclore da reacção, tanto como com o optimismo dos vários poderes. No cais de São Bento, tudo bem – mas para cá das suas portas, sob o peso dos Clérigos, o negrume dos edifícios mais vetustos dos Aliados ou as fachadas garridas das velhas casas de ‘brasileiros’ da Baixa, o mote era a desconfiança metódica e, em alguns casos, o da ironia sem reembolso.

Já o velho Doutor Homem, meu pai, usou o comboio sem romantismo e sem sarcasmo. Apenas com uma ligeira melancolia sem remorso. A memória das grandes viagens da sua juventude perdia-se em recordações de Paris e de Londres, antes de lhe ter crescido uma família que exigia mais do seu trabalho e menos dos seus talentos para a literatura e para a jovialidade. Ele compreendeu a tempo os sacrifícios que lhe eram pedidos, e que funcionaram como um bálsamo para esses anos.

in Domingo - Correio da Manhã - 5 Abril 2009