domingo, outubro 25, 2009

Meditações geográficas e sentimentais

A geografia é uma ciência reaccionária. A minha sobrinha – contei-o na crónica anterior – gostaria de mudar a posição de Portugal no planisfério para que estivéssemos mais próximos das suas latitudes. Mas não pode. As temperaturas da Senegâmbia não são as mesmas de Francoforte, e isso tem efeitos dramáticos no ritmo de vida. Fazia-nos jeito estar a meia-hora de Paris ou de Londres para efeitos civilizadores, mas, infelizmente, estamos encostados às Berlengas e à Ínsua de Moledo, verdadeiro promontório da minha velha pátria, que é o Minho de antanho, verde e litoral.

O meu Tio Alberto era o grande viajante da família. De cada vez que o recordo sinto-me um minhoto dos Arcos, sitiado diante do Gerês e do Soajo, enfiado num vale de onde nunca se sai a não ser para os braços do Eterno. Abandonando a Pátria a um ritmo sazonal, o Tio Alberto não lutava apenas contra o isolamento – o seu combate era contra os Elementos e contra o Destino. Ele não procurava Paris nem Londres (ao contrário do velho Doutor Homem, meu pai, para quem a cidade do Tamisa era o centro de todas as civilizações, antigas e modernas, pelo menos do seu planisfério, contando que nunca se deixou fascinar por Leptis Magna ou pela travessia do Bósforo): viajava para onde lhe não era permitido nem pela sua educação, nem pelos hábitos dos seus antepassados, nem – convenhamos – pela diplomacia da época. Ele apreciava a velha Pérsia e o Cáspio. Atravessava o Bósforo, justamente, em busca do desconhecido – e regressava ao Minho convencido de que o não encontrara ainda. Buenos Aires, Teerão, Istambul, Helsínquia, os planaltos astecas ou as coroas de algumas expedições pelo Levante: os seus mapas eram obtusos e nunca revelaram uma busca disciplinada, gerida pelo interesse ou pela necessidade; partia ao acaso, aproveitando a sua condição de celibatário, que lhe proporcionava tempo, fundos e liberdade. Apaixonou-se, em vida e creio que para lá da morte, por princesas russas e por mulheres cujo nome ignoro.

A Tia Benedita reprovava o tema e a tentação. Ela acreditava que o sistema solar estava errado e que o centro de todas as gravitações planetárias era Ponte de Lima, com as suas bandas de música, as suas romarias, os seus muros, as suas mimosas, as suas relíquias familiares. Nunca descobri por que razão não parti também eu, celibatário e remediado, à procura do desconhecido. Penso que o forte da Ínsua, coberto de neblina, me impediu de achar que o mundo fosse de uma natureza muito diferente da dos pinhais de Moledo. Não sei.

domingo, outubro 18, 2009

Alterações climáticas e felicidade geral

O velho Doutor Homem, meu pai, era um dândi. A acusação não tem nada de mal e, por si só: prende-se com considerações gerais sobre a meteorologia. Nesses anos, dourados pela nostalgia a esta distância, o antigo praticante de bilhar mandava fazer os seus dois fatos de meia-estação quando se aproximavam as temperaturas moderadas de Outubro. Eram, geralmente, copiados dos modelos que chegavam nos retratos do ‘Telegraph’ e nas recomendações do ‘The Sportsman’, uma revista que deixou de existir quando eu comecei a precisar dela.

A meteorologia exigia-o. Entre Setembro e Novembro, coisas suaves aconteciam nos céus e só as geadas das derradeiras semanas de Novembro lembravam a proximidade do Inverno. Até lá, e desde as vindimas – a época em que o meu avô partia para as suas rondas pelas quintas do Douro –, o tempo oscilava, pregava partidas e mostrava a sua excentricidade. O que aconteceu entretanto, nestes anos, não me sugere grandes observações a não ser que às vezes está mais frio e que, de outras, faz abundante calor. Mas o mundo está mais desequilibrado. A minha sobrinha atribui as culpas ao capitalismo em geral e enumera “desastres ambientais” que terão dependido quase exclusivamente dos americanos. Eu lembro-lhe também os chineses e os russos, mas o meu argumento não procede – gostamos de um inimigo próximo e vulnerável. A esta distância, que efeito produzem as críticas em Pequim e em Moscovo? Nenhum.

Mas eu continuo a achar que Moledo continua a viver os seus dias tranquilos, uma espécie de reserva moral e climática da nação e do nosso hemisfério. Os passeios ao longo das dunas, pelo trilho dos pinhais, parecem-me tão saudáveis como há vinte anos; o calor do meio-dia de Verão dá lugar a uma tepidez cheia de pudor que acalma as ondas. Sou pouco dado ao bucolismo – uma herança de família – mas comove-me esse retrato da natureza que muda apesar do capitalismo em geral. Limito-me a achar que a ordem das coisas está bem feita onde a minha sobrinha prevê convulsões terríveis e tragédias iminentes; ela voltou na semana passada da Alemanha, onde apanhou temperaturas negativas. A sua primeira reacção foi achar que tinha “regressado ao seu clima”, este, português e caloroso, próximo de Marrocos. Mas não: logo de seguida lembrou-se das “alterações climáticas” e verifiquei que ela também queria, além de mudar a meteorologia, de mudar a cartografia que atormenta os geógrafos. Colocar o país ao pé do Báltico seria uma grande coisa, acho eu. Felizmente os mapas são como são: está calor em Outubro? Pudera, é Portugal.

in Domingo - Correio da Manhã - 18 Outubro 2009

domingo, outubro 11, 2009

As coisas novas chegam a Moledo

O velho Doutor Homem, meu pai, observou cuidadosamente o primeiro grande aparelho de estereofonia que entrava pela antiga casa do Porto antes de emitir um juízo: “Isto não vai parar.” Ele referia-se à catadupa de novidades que começaria a chegar – e chegou – com a electrónica e a tecnologia dos anos setenta. A minha sobrinha Maria Luísa recorda-se vagamente do significado da expressão “vira o disco e toca o mesmo”, mas não tem a noção de quanto isso era verdadeiro e poderia acontecer. Virar o disco e tocar o mesmo era, de qualquer modo, um acontecimento, e reenvia-me para uma das velhas grafonolas que estacionaram numa das casas de família e que continua guardada no velho casarão de Ponte de Lima, ele já de si mesmo uma espécie de museu. Nesse aparelho tudo era mau: a cobertura de pele que se foi corroendo, o estado lastimável das suas agulhas de cobre, a flanela que cobria o prato que se movia a setenta e oito rotações por minuto, a manivela que accionava o prato e o mandava rodar – e até os discos da His Master Voice ou da Universal com simpáticas interpretações de óperas a que Maria Callas não sobreviveu, mas que representaram anos de veneração a Anna Moffo, a soprano a que o velho Doutor Homem, meu pai, devotava um amor não correspondido, secreto e cheio de mal-entendidos.

O meu tio Alberto, esse que foi o bibliófilo da família e que, de São Pedro de Arcos, no alto das serras, passeava pelo planisfério com a ironia dos melros de arribação, preferia – para uma grafonola Silvertone dos anos trinta – os seus discos de modinhas brasileiras e do ‘fox-trot’ que chegava ao Minho com décadas de atraso. Nesses anos – os anos cinquenta –, imagino-o escutando Dick Farney, o cantor mais famoso da época em Copacabana, no seu eremitério serrano, poiso sazonal para as suas deambulações pelo mundo fora. Será talvez uma imagem demasiado melancólica para a época (este Outono de empréstimo, tépido e apenas refrescado pela ondulação do sargaço à crista das ondas), mas ela funciona como uma gratificação de esplendor e de glória pessoal. Solitário, o Tio Alberto vivia rodeado de livros e de mapas, de almanaques e de instrumentos de cozinha. Foi ele que inaugurou a dinastia dos celibatários da família, que eu continuei com desvelo e egoísmo, desinteressando-me do futuro da espécie e crente na competência do resto dos Homem para se reproduzirem e se multiplicarem com vaidade. Assim tem sido. Eu estou entre as coisas velhas da família e as coisas velhas de Moledo. Sou uma grafonola dos anos trinta.

domingo, outubro 04, 2009

Os crepúsculos de Outono não regressam

O Outono vem cada vez mais tarde. Nem neblinas, nem chuvas mansas, nem interrupções para descolorir Moledo com a paleta de Outubro. Talvez ainda seja cedo para a literatura do género.

Já um dia contei aos leitores que a grandiosidade do crepúsculo do Outono não me traz à memória “those sad, dangerous things”, aquelas tristes e perigosas coisas para que o velho doutor Homem, meu pai, nos costumava advertir, roubando o verso a Shakespeare para nos emprestar algum do brilho e cultura que desperdiçaríamos com vaidade e inconstância. Ele tinha lido o verso numa daquelas antologias isabelinas que assinalavam a triste doçura do amor e citava-o amiúde quando os plátanos da Foz começavam a anunciar o Outono. A família nunca seguiu à risca a cartilha romântica do constitucionalismo, que mandava aproximar-se a melancolia com as folhas do Outono e afastar-se com o esplendor dos botões de magnólia explodindo nos jardins burgueses do Porto. O único mal que afligia esta família de varões insensíveis e de senhoras temperamentais mas de ideias fixas, era o reumatismo – não os hendecassílabos nem a rima alternada.

De modo que o crepúsculo do Outono não é um prefácio à melancolia da época. Traz-me recordações invejosas. Naquele período que ia do Verão de Ponte de Lima (quinze dias de Agosto, fatais e silenciosos, familiares) ao recomeço da vida depois das férias, havia um período em que permanecíamos na praia, assistindo à despedida da época balnear e à chegada dos bandos de patos das dunas, que vinham do interior para recuperar as dunas. Os anos cinquenta foram os meus anos românticos; o pôr do Sol de Afife, a estrada do Minho (esse litoral fotogénico que vai de La Guardia até aos arredores de Vila do Conde), a primeira viagem ao Brasil, o meu derradeiro Verão no Tamariz – tudo isso tem um ar de despedida de época balnear. De repente, os toldos de praia (uma raridade na época) recebiam o primeiro látego do vento de Outono, as primeiras chuvas, as leituras finais que sobravam da biblioteca aconselhada pelo velho doutor Homem, meu pai, confiante em que todas as estacões do ano eram boas para cultivar o espírito e para afastar os sintomas de barbárie. Mas eu já não era adolescente na altura.

Eu já tinha envelhecido e vestia fatos cinzentos, ou escuros, e usava chapéu. Formava a minha biblioteca. Resumia os meus amores até entã, jogava ‘poker’. Foi durante um crepúsculo de Outono que se desfez o meu noivado, anunciado com moderação. Aprendi que os crepúsculos de Outono não regressam.

in Domingo - Correio da Manhã - 4 Outubro 2009