domingo, setembro 27, 2009

Lições de Outono mesmo à beira-mar

A partir desta semana, na verdade, encerra-se o plano meteorológico do Verão mesmo que o calor persista.

Os carros ficam estacionados perto dos pinhais e, lentamente, a partir das cinco ou seis da tarde, debandam para a estrada principal ou, agora, para a auto-estrada que segue para o Porto; em Setembro isso significa o fim da 'época balnear'. Para o temperamento de um minhoto, o domingo à tarde é um final de romaria, uma despedida cheia de camisas brancas arregaçadas e de sapatos ligeiramente cobertos de pó. Lembro-me dos homens de colete, sentados nos muros, sinalizando o domingo que acaba em Cerveira, em Ponte de Lima, nos Arcos.

Moledo, no entanto, não tem nada de rural. Moledo significa mar. E, portanto, é justíssima a expressão 'época balnear'. A partir desta semana, na verdade, encerra-se o plano meteorológico do Verão mesmo que o calor persista e a vinda das chuvas seja considerada uma bênção. Dona Elaine acha que as chuvas nesta altura são um perigo para as videiras e as vindimas, mas o meu almanaque precisa delas depois de outro Verão inclemente. Passada a temporada do iodo, como eu chamo à época em que os areais são invadidos por famílias bronzeadas e adolescentes ginasticados, Moledo agradece uma chuva que limpe os pinhais e faça assentar a poeira.

Estas observações acontecem-me todos os anos, mas têm alguma inocência. Às vezes, a meteorologia parece-me um milagre – uma espécie de acontecimento que prova que o universo está ou completamente desordenado ou bem feito. O velho doutor Homem, meu pai, que era um homem sensato, acreditava que o universo estava bem feito – eu limitei-me a aceitar essa evidência como se aceitam as trovoadas repentinas de Verão ou as derradeiras geadas de Março. Na cabeça dos velhos, a meteorologia é a única ciência cuja utilidade não precisa de ser demonstrada, juntamente com a cardiologia e a 'clínica geral'.

Tudo o resto pode acontecer com ou sem regularidade, com ou sem justificação. Por mim, tendo em conta a minha tradicional incapacidade de estabelecer contactos com os semelhantes, a meteorologia é um assunto recorrente; os portugueses apreciam-na e diariamente prestam-lhe as mais doces homenagens.

Na polémica política sobre evolucionismo e criacionismo, por exemplo, mantenho-me nas margens do mais irredutível cepticismo: ignoro como chegámos aqui. Isto, assegura-me a minha sobrinha Maria Luísa, constitui uma ameaça à imagem que os meus timoratos leitores têm do mais reaccionário dos cronistas de Moledo.

in Domingo - Correio da Manhã - 27 Setembro 2009

domingo, setembro 20, 2009

O Outono, a Espanha e as ostras da época

O Tio Alberto, bibliófilo, jurista, botânico e gastrónomo de São Pedro dos Arcos, tinha o costume de passar alguns dos seus dias de Outono na Galiza, ora embrulhado numa manta diante das correntes do Cantábrico, ora de botas calçadas a percorrer os penhascos da Costa da Morte. O hábito tinha a ver com as ostras de Ribadeo e da costa do Ferrol (na altura mencionada como El Ferrol del Caudillo), que se despediam da humanidade nesta altura do ano. O velho Doutor Homem, meu pai, serviu-se várias vezes do seu apetite pelas ostras para rumar à Corunha, a fim de se encontrar com o Dr. Cunha Leal (cerimonial que foi interrompido quando viu Afonso Costa na cidade), então exilado na costa galega. Para evitar dissabores à Tia Benedita, guardiã do miguelismo familiar, o causídico deixou que ela pensasse que se tratava, digamos, “de mulheres”. Tudo teria sido preferível a um contacto, mesmo visual, com o demagogo da República. Já na minha juventude, Vigo e os tabacos canarinos e cubanos eram um pretexto para visitar a Galiza sob um pretexto meramente comercial.

Nesse período, o Tio Alberto deixava-se tentar pelo seu espanholismo. Na época não se falava de “iberismo”, uma tentação política muito actual. Não, o Tio Alberto não era nem seria iberista – ele era, antes, “espanholista”. Ou seja: gostava de Espanha. Gostava das aguardentes, das ‘queimadas’, das ostras galegas, das paisagens, da língua – e privou com D. Álvaro Cunqueiro, o autor de “La Cocina Cristiana de Occidente”e de “Tertulia de Boticas Prodigiosas y Escuela de Curanderos”, além de ter cozinhado para Camilo José Cela um almoço de sardinhas fritas e ovos com chouriço.

Gostar de Espanha não significa, necessariamente, que se queira ser espanhol. É essa a diferença entre o Iberismo e o “espanholismo”. Onde um “espanholista” admira Cervantes, as “paellas”, os “mesóns” perdidos nas montanhas, Goya e Velázquez, o “soleá” sevilhano ou as senhoras de Calatayud (além das canções de D. Rocío Jurado), o defensor do Iberismo quer ser cidadão de Valladolid ou de Múrcia ou votar num político de Alicante, o que não constitui uma vantagem para quem nasceu em Ponte de Lima ou na ilha do Corvo, lugares aprazíveis e civilizados. Um “espanholista” tem saudades das lojas de Ultramarinos e da Plaza Mayor de Salamanca. Um iberista quer ser atacado à bomba no país basco e pagar impostos numa repartição de Badajoz.

Um tio do velho regime, depois de roubar uma noiva à porta da igreja dos Arcos, fugiu com ela para Espanha para casarem no Lugo. É isso que Espanha tem de ser: um refúgio.

in Domingo - Correio da Manhã - 20 Setembro 2009

domingo, setembro 13, 2009

Teorias políticas para o Outono

Qual a diferença entre setembristas e cartistas? Hoje, ninguém sabe. A minha família viveu, embora de longe, a disputa entre estas duas venerandas figuras “do liberalismo”. Foi na sequência da Concessão de Évora Monte e é um episódio do passado; a minha sobrinha insiste que se trata do “passado remoto”, querendo com isso dizer que todo e qualquer acontecimento anterior à descoberta da anestesia para efeitos odontológicos não passa de uma velharia cujo interesse “é muito relativo”. A História tem fraca utilidade – e, hoje em dia, é muito ultrapassada pela fé, que marca pontos em todos os debates. O Tio Alberto, bibliómano de São Pedro dos Arcos, colocava as lombadas dos tratados de política em relativa proximidade às teodiceias e aos seus fanatismos.

O costume de assistir a “debates pré-eleitorais” deixa a família em estado de letargia absoluta, pela simples razão de que os não vê. Trata-se de um hábito muito saudável sobre o qual se estabeleceram duas práticas igualmente profilácticas. A primeira consiste em escolher o candidato em que se vota antes de a campanha eleitoral, propriamente dita, começar. Isto poupa uma considerável soma de tempo, uma vez que os eleitores da família não têm de se preocupar com os debates televisivos nem com a leitura das notícias sobre as procissões de promessas que decorrem durante o período profano em que o país – em hipótese – decide sobre o seu futuro. A Tia Benedita, guardiã da tradição na família, teria optado por esta hipótese, uma vez que se convencionou que o futuro da pátria é duvidoso desde que o senhor Dom Miguel abandonou os areais de Sines.

A segunda prática é mais radical e creio que teria suscitado o malévolo interesse do velho Doutor Homem, meu pai; trata-se de escolher um governo como adversário, mal ele é empossado. Isso economizaria bastante mais tempo e energias durante este período eleitoral.

Infelizmente, as coisas são como são; a fé suplanta todas as energias da política, que deveriam ser canalizadas para fazer três perguntas essenciais: Vou pagar mais ou menos impostos? O país vai ficar mais ou menos endividado? Estou melhor ou pior do que há quatro anos?

A minha sobrinha considera, com toda a razão, que se trata de perguntas razoavelmente egoístas. Mas a verdade é que naquele espaço exíguo da “cabine de voto” cabe apenas um eleitor de cada vez e não o país inteiro. Portanto, cabe a cada um fazer as perguntas que entender, com inteira liberdade. Tudo o resto será uma chantagem em nome da democracia.

in Domingo - Correio da Manhã - 13 Setembro 2009

domingo, setembro 06, 2009

Votar de acordo com a meteorologia

A política mudou muito – desde que me lembro. Os Homem, mesmo que voluntariamente afastados da ribalta, nunca deixaram de conspirar no círculo doméstico. Ao velho Doutor Homem, meu pai, afligia-o a imagem do “velho torrão” governado pelo dr. Salazar e administrado com uma folha de almaço para tomar notas sobre uma campanha das vindimas. Ele suspirava por grandeza – coisa que era difícil nesses tempos – e por civilização. Tinha as suas coisas. Mas, recordando os seus tempos londrinos, acreditava que a política se discutia com firmeza e, curiosamente, com sentido de humor.

Não assistiu à “modernização da política” e à discussão sobre se a vida sexual das famílias devia ser decidida pelo Estado, que também decidiria sobre o nível de colesterol aceitável pelo meu bom clínico de Viana (que me recomenda passagens de rojões à minhota em duas ou três vezes por ano) ou sobre minudências de despenseiro. Um Estado assim, transformado em almoxarife e governanta, não estaria nas suas previsões. Quando o ar se tornava irrespirável, deambulava pelo velho casarão de Ponte de Lima e fazia planos para os próximos tempos. À distância, entendo-o bem: ele vivia a solidão dos homens livres que não prestam contas sobre os livros que lêem nem sobre o Deus que veneram.

O mundo tornou-se pequeno e nada afável. Ao Estado subiram governantas e almoxarifes que pretendem decidir a vida dos seus semelhantes, organizando-lhes o calendário das obrigações como antes se organizava num convento a hora das orações. A namorada holandesa do meu sobrinho Pedro acha interessante esta família de bibliófilos, gastrónomos, botânicos, fugitivos, advogados, agricultores – e de gente que continua a viver como se fossem vivos, verdadeiramente, os retratos que guardam nas paredes. Aproveitando o final do Verão, ela passeou a sua fragilidade loira pelo areal de Moledo, cujas águas devem ser ligeiramente menos frias do que as da sua Frísia natal. Compreendendo que havia eleições em breve, quis saber se a família já tinha feito as suas opções e decidido o voto.

“É só dia 27”, respondeu-lhe Maria Luísa, a minha sobrinha. “Está quase”, voltou ela. Maria Luísa encolheu os ombros e perguntou: “O tio vai votar de manhã ou de tarde.” Este ano votarei de tarde, esclareci, acho que para me mostrar desconfiado sobre a meteorologia. “Ah, então”, começou ela a explicar à holandesa, “vais ter de perguntar a Dona Elaine o que é o almoço. Consoante a ementa, assim será o voto. Pelo menos costuma ser.” A frísia abriu a boca mas não disse nada. Maria Luísa continuou a ler o livro.

in Domingo - Correio da Manhã - 6 Setembro 2009