sábado, fevereiro 27, 2010

A história de um Verão que não regressa

Ao ver as antigas fotografias de que não consegui separar-me ao longo destes últimos sessenta e cinco anos, aproximadamente, vejo como elas reconstroem não só a minha recordação – que é vaga e disforme, turvada por desaparecimentos e mudanças – mas, também, a parte do passado que fiz por esquecer. Guardei tudo por uma espécie de masoquismo mas, também, pelo vício arquivista que os Homem mantiveram ao longo dos anos. Retratos, folhetos do paquete Funchal, ementas dos restaurantes da Wagon-Lits, hotéis onde pernoitei e de que guardo uma fotografia chuvosa, documentos com e sem importância – o meu passado está catalogado como uma enciclopédia a que quase nunca se recorre. A minha sobrinha Maria Luísa, à medida que passam os anos e espera por uma revelação que explique porque sou como sou, folheou alguns desses álbuns que pertencem, exclusivamente, ao meu passado. E o meu passado, como o passado de toda a gente que o conserva, é apenas um Verão que não regressa.

O meu celibato inquieta-a porque o destino das pessoas era o de se casarem e de terem filhos e de morrerem em família, como gente que cumpre a sua obrigação sem esperarem por outra satisfação. Ao regressar do Brasil, nesse Verão em que um risonho presidente Juscelino Kubitshek inaugurou Brasília, senti que me encaminhava, afinal, para o meu destino. Levado ao Brasil para – seguindo os conselhos e as ordens de Dona Ester, minha mãe – curar um mal de amor, voltava à Pátria para me recordar de outro. Dona Ester não tinha paciência para aturar achaques românticos, que em seu entender se curavam com temporadas de praia; isto favoreceu uma certa misantropia e um cinismo de que me não libertei.

Michelle, a “pequena holandesa” (a designação é de Dona Elaine, a governanta de Moledo, que aprecia as relações multiculturais sem sair do Minho há trinta anos a não ser para as suas excursões à Galiza ou à Madeira) que namora o meu sobrinho Pedro, passou aqui o Entrudo e quis saber se eu era viúvo. Parece-me que a negociação dos calvinistas com a morte e a eternidade é um assunto trivial. Expliquei-lhe que não tinha essa infelicidade. Apenas não tinha casado. Ela suspeitou, durante uns instantes, que a minha relação com as mulheres era, portanto, renitente. Percebi-o e esclareci: que não. Há amores que nos tragam para sempre. No meu tempo éramos românticos ou cínicos. Não havia meio-termo. Calhou-me, ai de mim, inaugurar o período em que um homem podia ser as duas coisas ao mesmo tempo. E aqui estou.

in Domingo - Correio da Manhã - 27 Fevereiro 2010

domingo, fevereiro 21, 2010

A perfeição do mundo e o riso dos Homem

Duas causas concorrem para que a vida seja como é: a natural imperfeição do género humano e a presunção de que o mundo pode mudar-se para benefício geral. O resultado disto é um pessimismo tão desastrado como, igualmente, confirmado pela História.

Em Portugal, graças à nossa tendência para a presunção e para a pompa, confunde-se muito o pessimismo com a tendência para a catástrofe. A Tia Benedita, que representa o braço do reaccionarismo na família, duvidava de tudo excepto dos seus dogmas particulares. Ela não depositava grande confiança nas realizações humanas, o que, além de amargurá-la, não lhe trazia desilusões de monta; limitava-se a achar que a família estava condenada a perecer sob os ataques da Maçonaria, da República e da imoralidade. O velho Doutor Homem, meu pai, apreciava-lhe a capacidade de não acreditar em nada, bem como a fidelidade às suas obsessões; o Tio Alberto, o bibliómano e gastrónomo de S. Pedro dos Arcos, limitava-se a viajar para não sucumbir ao pessimismo ancestral da família. Percorrer o mundo e regressar de mãos vazias pode bem ser um resumo da sua vida, de que sobraram uma biblioteca raríssima hoje em dia no Minho, alguns maços de cartas trocadas entre a Serra de Arga e as ventanias do Cáspio — e lendas que o elegem como o grande aventureiro desta família preguiçosa e renitente.

Nem a Maçonaria, nem a República nem a imoralidade — reunidas ou por separado — conseguiram demover os Homem de cumprir o seu destino de derrotados da História. Com poucas ou nenhumas diferenças, os Homem de hoje limitam-se a cumprir os desígnios do passado: permanecerem despercebidos. As novas gerações consomem haxixe e ouvem rock, trocam de cônjuge, vivem a sua vida e evitam comprometer-se. Para seguir este caminho é necessária uma dose substancial de paciência. O velho Doutor Homem, meu pai, vendo o caminho que as coisas tomavam, e prevendo revoluções e catástrofes (que, de qualquer modo, só se realizaram pela metade), o velho advogado suportou com estoicismo as ilusões dos outros, sorrindo afavelmente para os excessos cometidos e a cometer. “Filosofemos”, pedia um derrotado político nas páginas do 'Eusébio Macário', de Camilo. Quer dizer: “Mudemos ao sabor da corrente — e inventemos uma explicação.” Ele nunca precisou de evitar esses escolhos. Acreditou que o mundo continuaria a organizar-se para ser cada vez mais tolerável mas imperfeito. Agiu em conformidade, dedicando-se à poda das japoneiras no jardim do casarão de Ponte de Lima. Um velho conservador nunca se surpreende com a história.

in Domingo - Correio da Manhã - 21 Fevereiro 2010

domingo, fevereiro 14, 2010

A vida privada e as coisas escondidas

A vida privada é uma invenção recente, tal como a tintura de iodo. Antes da tintura de iodo existia o mercurocromo com solução a 5% (e, em algumas farmácias, a 10) além do pó de sulfamidas, de que ainda se guarda um minúsculo frasco num armário de medicamentos, creio que por distracção – e porque o acaso e a distracção andam juntos para provar que a vida não muda de um dia para o outro. A administração de gotas de mercurocromo, essa solução infalível para todos os ferimentos do Alto Minho, obedecia a uma tradição estival na nossa família – o Verão estava cheio de displicência, de arranhões e de feridas nos joelhos.

Mas a criação da “vida privada”, essa, é ainda mais recente do que a da tintura de iodo. Antigamente, não existia, pura e simplesmente. Havia coisas públicas e havia “coisas escondidas”. Se alguma coisa pertencia à esfera do que viria a designar-se por “vida privada”, ficava circunscrita, antes disso, ao universo do que se escondia. Eram “coisas escondidas”. O espírito actual do mundo, no entanto, descrente das virtudes da civilização “judaico-cristã” (a expressão, ouvi-a pela primeira vez à minha sobrinha Maria Luísa a propósito da sua deambulação contra os tabus), acha que tem de haver “transparência”. Pois se há transparência deixou de haver “coisas escondidas”. Ora, eu tenho uma admiração secreta (nem podia deixar de sê-lo) pelas “coisas escondidas”, e a ideia de transparência lembra-me a minha imagem, ao espelho, vestido de roupa interior e pijama, só que exposta ao público. O interesse que o público tem, ou não, pelos meus pijamas, é coisa que naturalmente me transcende, embora eu prefira que eles sejam apenas conhecidos dentro de casa.

Com o fim das “coisas escondidas” – o sexo, as economias, os hábitos pessoais de higiene, as conversas de maledicência à mesa de família – nasceu esse círculo desfocado a que se convencionou chamar “vida privada”. A “vida privada” está ao alcance do olhar do público; simplesmente, o público pode, ou não, conforme lhe for mais conveniente, estar ao corrente.

Quando existiam cavalheiros, existiam “coisas escondidas”. Quando se convencionou que o cavalheirismo era uma excrescência e uma inutilidade que apenas trazia prejuízos num mundo burguês e comandado pela “transparência” – as “coisas escondidas” passaram a designar-se como “formas de hipocrisia”, tal como o fato de banho completo, o pudor e a literatura para todas as idades. Com isso, confesso, desapareceu uma das minhas razões de viver. A minha sobrinha acredita que sou um poço de perversidade.

in Domingo - Correio da Manhã - 14 Fevereiro 2010

domingo, fevereiro 07, 2010

Duas rendodilhas sobre a pátria, insensível

O velho Doutor Homem, meu pai, não conheceu a democracia (sobrevivendo ao 25 de Abril, via na velha Inglaterra um modelo de decência) mas achava que o país tinha uma queda insuspeita para a lamechice. Ele atribuía isso à falta de carácter e ao gosto pela literatura romântica, muito constitucional e setembrista, alimentada por vates que gostariam de pôr em verso o Diário do Governo – e, em simultâneo, de transcrever para prosa didáctica os lamentáveis versos patrióticos de D. Pedro, modelo que ainda hoje se segue nos jogos florais das nossas províncias. A cada um, juntava, segundo as suas responsabilidades; à Pátria, conforme os seus defeitos.

A minha sobrinha Maria Luísa acha isto um arrazoado conservador e pouco digno de um velho que ainda lê romances ingleses. Esta semana veio indignada com “qualquer coisa” cujas culpas essenciais atribui ao governo. Limitei-me a confirmar, acenando, tanto mais que era necessário cuidar da terra para os hibiscos que me foram prometidos por um botânico de Vila Praia de Âncora, cobrindo-a de nova turfa e falando-lhe em surdina para que se não destempere. Ela achou “indecente” a minha “indiferença”, característica muito próxima da misantropia, se o não fosse da tolerância com que devemos aceitar os dislates do nosso tempo. Limitei-me a confirmar que vivemos em democracia e que o povo tinha votado – o que, em linguagem do Minho de antanho, também quer dizer “lá as fizeram, lá se arranjem”.

O meu tempo já não se perde em matérias tão superiores como a ciência política ou tão especiosas como certas minudências de história da Pátria. Limito-me a considerar, vagamente, que não compreendo a surpresa – como se gente medíocre e ressentida só pudesse produzir mediocridade, ressentimento e tiranias. De todas as coisas que os Homem conservaram nos últimos dois séculos, titubeando entre revoluções e a modorra que o dr. Salazar inventou, uma se distingue: o conhecimento do mundo mostra que o género humano aprecia as tiranias estabelecidas em nome do progresso. O único problema é que o género humano não progrediu grandemente.

P.S. – O Dr. Henrique Barreto Nunes reformou-se da Biblioteca Pública de Braga, o que é uma perda substancial, não para a Biblioteca, mas para os seus livros (que o conheciam bem) e para leitores aplicados e com gosto. Durante décadas, ele iluminou com sabedoria e sensatez aquelas estantes. Convidá-lo para um almoço de Sábado neste eremitério de Moledo é uma obrigação a que não faltarei.

in Domingo - Correio da Manhã - 7 Fevereiro 2010