domingo, janeiro 30, 2011

Elogio das coisas que eram o que foram

Por que razão me interessam os livros velhos, as ruínas de Venade, as montanhas que oscilam sobre Moledo? Por nada. Habituei-me a eles. Tal como os livros velhos e os autores clássicos, as paisagens emudecem-me ao crepúsculo e preparam-me para o dia seguinte. Os portugueses não pensam assim: têm uma repugnância democrática e perliquiteira pelo “velho” e pelo “antigo” como se o tempo transportasse consigo o vírus que alimenta todas as maldições. Se um ministro desses, que agora aparecem na televisão, anunciasse uma estrada que arrasasse pinhais, maciços de granito coberto de musgo, muros cobertos de hera, prados de mimosas adocicadas, a multidão pensaria – antes de mais – no “progresso”.

Outro dia, no ‘Daily Telegraph’ (um hábito que o velho Doutor Homem, meu pai, alimentou e que ainda se mantém aos Sábados no eremitério de Moledo), li que as populações de um ‘county’ não estavam na disposição de ver passar um novo comboio “a alta velocidade” no meio dos prados onde nada crescia a não ser a vegetação que lembrava a paisagem do ‘Monte dos Vendavais’. A casmurrice explicava-se apenas por isso: porque a paisagem lhes pertencia, e não aos engenheiros que iriam fabricar um comboio que iria encurtar a distância de 300 quilómetros em vinte minutos. Vinte minutos, digamos, é o tempo que demoram apenas vinte minutos: um naufrágio em dia de tempestade, uma vaga de chuva que vem e passa – e a paisagem demora anos a formar-se. Um livro demora anos e anos a envelhecer e a provar que resistiu a décadas de poeira e crises do gosto. As ruínas entre os carvalhos de Venade ou os recôncavos onde poisam as neblinas de Caminha são o resultado de séculos de espera. O próprio crepúsculo diante da beleza frugal e sombria de Santa Tecla, atravessado por tanta boa e má poesia regional (segundo me disseram), é obra de um tempo que não cessa de comover-me. Diante disto, os portugueses falariam do “progresso”, como de uma inevitabilidade carregada pelo desinteresse.

Talvez esteja velho não apenas por isso resumir os cuidados do meu médico de Viana; há também um mundo que já não entende a necessidade de coisas velhas, antigas, coroadas pelas paisagens e pelas palavras que explicavam a ordem das coisas. A minha sobrinha Maria Luísa diz que eu tenho razão no que digo, mas que são muitos maus hábitos a sobreporem-se uns aos outros, formando uma barreira incómoda, que torna irreconhecível a face da terra. Pode ser. O tempo passa sobre homens e mulheres que eram como Ulisses e Penélope. E que repetem a sua existência.

in Domingo - Correio da Manhã - 30 Janeiro 2011

domingo, janeiro 23, 2011

Estamos melhor hoje ou ontem?

Periodicamente, a Tia Benedita lamentava-se sobre o andamento das coisas do mundo e, como qualquer contabilista de Viana, fazia os seus balancetes e resumos de exploração. A linguagem cabe no deve e haver de um comerciante que cuida da sua "escrita" mas talvez – penso nisso a esta distância – fosse absurda no caso da matriarca dos Homem.

Para a Tia Benedita, entusiasmada pelos ardores do Verão e pela presença da família, numerosa, barulhenta e descuidada, o passado tinha uma inultrapassável vantagem sobre o presente: já não lhe dava cuidados. Matreira e esfíngica, como uma mulher do Minho, ela sabia que nos ludibriava com as suas lamentações de um Job feminino e austero; de entre o auditório, três ou quatro (entre eles, o velho Doutor Homem, meu pai) sorriam ao discurso sobre o estado do mundo. Ela tinha a certeza de que o mundo não seria diferente; a assembleia, entretida e cabisbaixa com as migalhas do bolo de mármore, pensava que um pouco de melancolia não ficava mal naquela cena familiar.

A verdade é que o tempo sucede rapidamente ao tempo que passa. Mal se dá conta. A sua velocidade cansa, mais do que distrai. Para a Tia Benedita, como para Espinosa (que ela identificava como um maçon holandês) ou para o próprio Job, o lamento era mais uma figura de estilo. Estamos melhor hoje ou ontem? Os vagos miguelistas da família, que de tempos a tempos abriam os armários nos Arcos, em Ponta da Barca, nas margens de Valença, no casarão de Ponte de Lima, sabiam a resposta: estariam melhor ontem. Havia uma ordem entre as ruínas, a idade ainda não fora maculada pela angústia das doenças e pela dor das despedidas, o mundo tinha fronteiras.

Os portugueses estariam melhor antes ou depois do 25 de Abril?, perguntavam os sociólogos na semana passada. A minha sobrinha Maria Luísa acha a pergunta estapafúrdia, tão útil como saber a cor da casaca do Menino Jesus da Cartolinha (que é verde). E queixa-se: que "as pessoas são ingratas". Ela supõe que o mundo tem uma explicação positiva, tal como a Tia Benedita, que preferia o passado pela simples razão de que já não lhe dava preocupações.

Maria Luísa fica melancólica nestas ocasiões, como se o mundo se tivesse portado mal e desobedecido a um imperativo moral. Recolhe-se e fica ciumenta, e creio que sonha com a felicidade. Tentei explicar-lhe a forma como o Tia Alberto, bibliófilo de São Pedro de Arcos, encarava as coisas – o grande segredo é confiar no tempo. Há-de haver um tempo. Mesmo que seja um tempo passado.

in Domingo - Correio da Manhã - 23 Janeiro 2011

domingo, janeiro 16, 2011

Um mundo em que não há limites

O velho doutor Homem, meu pai, temia ser confidente de pessoas que tivessem sofrido para além de certo limite (ele sabia que o género humano, na iminência de pisar esse risco, sente orgulho na dor que exibe) – com o argumento de que não era possível garantir que tamanha dose de sofrimento fosse verdadeira, sobretudo num mundo que tem gosto em maravilhar-se com o riso dos alarves. Penso, hoje, que ele teve sorte em não ver televisão. Ao contrário do que pensam certas pessoas bem-educadas, mas desajustadas em relação ao que se passa no mundo, a televisão não pode ser de outra maneira. O riso dos alarves conquistou o mundo, espalhou-se por todos os cantos como um gigantesco aparelho de televisão – e fala de prazer, como uma exigência que tem ares de figurar nas certidões de nascimento ou garantida como o direito de voto.

Lembro-me, por isso, da velha e manhosa sabedoria dos Homem, quando calha estarem entretidos em comentários sobre a vida alheia (uma distracção só permitida paredes dentro e no recato da sala de jantar ou na varanda do velho casarão de Ponte de Lima), e da severa advertência patriarcal diante de juízos sobre adultérios, infidelidades, questões amorosas e outras falhas da intimidade: "Disso não se fala, é com cada um." A ideia é generosa, mas também defensiva.

Neste como em outros assuntos é bom observar que a destreza social diminui bastante com a idade e nunca se sabe o que se pode esperar de um velho, a quem se perdoam a falta de memória, os achaques de Primavera ou as idiossincrasias na política ou na literatura. A exibição da dor e das chagas pessoais, o interesse doentio pela miséria alheia, a felicidade diante das sombras – não é preciso grande "destreza social" para compreender que as regras mudaram muito e que a televisão multiplica por várias parcelas os defeitos de carácter do cidadão comum. Mata-se com bastante facilidade, é-se corrompido com desvelo e sentido da concupiscência, mente-se e desmente-se sem remorso, sentimento de culpa ou apenas vergonha.

O caso da morte do "cronista social" em Nova Iorque é um desses sintomas; não pelo crime em si mesmo, porque o horror e a violência se repetem como uma desgraça que periodicamente vem relembrar a nossa natureza. Mas pelo que se comenta a propósito e pelo que vamos sabendo acerca da desmoralização do mundo. Para uns, o mundo falha redondamente; para outros, o Inverno será relembrado por mais isto; para outros, o movimento dos planetas continua a provar que não há limites. E é isto.

in Domingo - Correio da Manhã - 16 Janeiro 2011

domingo, janeiro 09, 2011

Breve elegia para o mês de Janeiro

Entretenho-me, por vezes, a ver fotografias de Moledo nos anos trinta, quarenta e cinquenta (os anos sessenta constituem uma inexplicável quebra na minha reserva de nostalgia) – quando eu tinha a idade de apreciar Moledo por aquilo que Moledo era: um cenário de filme italiano ou francês, romântico, a preto e branco, com os velhos automóveis estacionados diante da praia. Um deles seria o de minha mãe, Dona Ester, que teria acabado de lançar os seus filhos no areal, aguardando a finíssima neblina do entardecer, tépida e rescendendo a aromas saudáveis, ao sal empurrado pelo vento, aos mistérios do iodo.

Quando penso nesses anos estabeleço um contraste, não com a minha idade de hoje, pouco apresentável, mas com a que marcou o início da velhice; havia, na época, problemas de hipertensão que se curavam com o cheiro da resina dos pinhais à volta das dunas, desequilíbrios respiratórios que se diluíam com o magnífico solário que o Verão dispunha entre as barracas da praia, depressões desconhecidas que não chegavam a ver a luz do dia devido ao uso da água fria que atravessa os bancos de areia e os rochedos da Ínsua. Tratava-se de uma medicina irregular e estapafúrdia, radicalmente homeopática, que não transigia com os aparelhos que hoje medem a tensão arterial, com as pílulas para desconchavos renais ou para males de fígado, ai de nós.

Antes de considerar – porque há factos indesmentíveis na nossa biografia médica – que a minha vida estava em risco permanente, a partir dos setenta, eu achava que era a beleza natural de Moledo que me impedia de morrer. O velho Doutor Homem, meu pai, que era um ser urbano e cosmopolita – ainda que solitário – escapava da morte refugiando-se em Ponte de Lima, onde boa parte dos seus ancestrais tinham sido enterrados, entre ciprestes frondosos e canteiros coloridos; no meu caso, olho – em busca de oxigénio – os pinhais e um resto de arvoredo minhoto, tal como Dona Ester, minha mãe, nos despejava nas praias do Minho na esperança de acumularmos saúde para os dias futuros e os tempos aziagos.

A partir de certa altura, a vida é um risco inacessível, uma espécie de passeio na falésia. Vigiamos indicadores tão vagos como a espuma das ondas, temos certezas tão inóspitas como a meteorologia de Inverno. Um pouco de tranquilidade assenta no calendário como uma promessa de paz. Janeiro, por isso, é um mês de pousio e de elegância. Uma vaga paragem no tempo, a partir da qual não há previsões nem dia seguinte.

in Domingo - Correio da Manhã - 9 Janeiro 2011

domingo, janeiro 02, 2011

A crise, duradoura e cruel como sempre

Diz-se que o meu avô, administrador de quintas no Douro, regressou nesse ano mais circunspecto da sua viagem a Barca d’Alva. Estávamos antes do regicídio. O seu poeta, Guerra Junqueiro, convencera-o de que “a crise” seria duradoura e cruel. A Quinta da Batoca, nos limites do mapa de Portugal, recebia em primeira mão os ventos de Espanha e as notícias de La Fregeneda (a primeira das aldeias) mas os oráculos do poeta soavam sempre mais alto. O velho Doutor Homem, meu pai, atribuía essa relação entre o seu pai e o autor de ‘A Velhice do Padre Eterno’ (o livro nunca entrou nas estantes de Ponte de Lima mas havia um exemplar na casa do Porto) à estada do poeta em Viana do Castelo, onde se tomou de amores pelo Minho, pelas ruas da cidade e pelo mar do Norte. A seu ver apenas isso desculpava o “desvio ideológico” e a amizade que se formou entre aquelas duas almas destinadas a visitarem-se periodicamente.

A “crise” da época era, como mais tarde se dizia, durante a II Guerra, “a falta de víveres”. Dona Ester, minha mãe, atravessou-a com heroísmo e dedicação, e todos pudemos sobreviver. Não voltou “crise” assim. Depois do 25 de Abril “a falta de víveres” ocorreu aqui e ali, mas o Minho, se não era o celeiro da Pátria, estava perto de Espanha e tinha hortas suficientes.

Os Homem não são gente rica. Não o eram no “velho regime”, não o foram durante o constitucionalismo e, seguramente, não o foram durante a República. Poderiam ter sido, não fosse a casmurrice dos antepassados da tia Benedita, exemplares do “liberalismo portuense”, burgueses de Cedofeita, governadores civis ou putativos ministros do reino. Mas a casmurrice falou mais alto; velhos fidalgos dos Arcos, de Ponte de Lima, de Viana ou, mais prosaicamente, dos arredores de Braga, temiam o apocalipse, que viria com os pândegos do príncipe brasileiro ou com o jacobinismo dos advogados do Porto. Resistiram e trabalharam para sustentar a sua solidão política, um vício honrado e caríssimo, hoje como ontem. As “crises” passaram por eles como uma ventania do mar do Minho. Observavam-nas de perto, mas protegidos pela parcimónia e pela mediania, num país que detesta a parcimónia e a mediania. Quando as burguesias do Porto (e do resto do país) ostentavam o carmesim da sua fortuna e do optimismo das suas revoluções, a velha família contentava-se com as sestas à sombra dos pinheiros dos Arcos de Valdevez e com a biblioteca de Ponte de Lima. Tínhamos aprendido que a “crise” seria duradoura e cruel. E permanente. Ainda cá está.

in Domingo - Correio da Manhã - 02 Janeiro 2011