domingo, junho 26, 2011

Da necessidade de esquecer a morte

Do primeiro dia de cada ano até ao último dia das nossas vidas podemos esperar as coisas do costume: súbitas mudanças de meteorologia, catástrofes naturais, repentinas alterações do equilíbrio das almas que nos rodeiam (geralmente na direcção do abismo, comprovando o que desde há muito se sabe sobre a fragilidade da natureza humana) – e a morte. Tudo o resto são contingências sem ordem nem regra e mesmo a meteorologia, depois dos anos em que o Dr. Anthymio de Azevedo dominava os interesses maiores dos nossos serões televisivos, deixou de ter princípio, meio e fim.

A Doutora Maria Filomena Mónica escreveu um livro sobre a morte; não há nada tão distante como o primeiro e o segundo termo dessa relação, ou seja, a autora e o assunto do livro (tratado com o conhecimento e o rigor de uma socióloga). A morte é um assunto para espíritos jovens, que se entretêm a observá-la como as coisas devem ser observadas para se poder ter sobre elas uma visão de conjunto: de longe. O nosso mundo há muito que abandonou o desejo de Razão; as minhas irmãs acreditam que há nas religiões orientais, nas da América Latina e de África (a Oceania está ainda fora das suas amplas jurisdições) uma presciência que nos falta, a nós, pobres ocidentais que leram ‘O Monte do Vendavais’, ou franziram o sobrolho diante do ‘Tristram Shandy’, ou se comoveram com o primeiro filme sonoro ou recordam a ida do homem à Lua. Eu compreendo-as bem; apreciam as coisas de longe, emocionam-se diante das epifanias estranhas ao seu mundo original, acham um colorido perfeito nos fragmentos de sagrado que vêm das savanas de África ou das estepes da Ásia, onde a morte é uma passagem anunciada e, aparentemente, diluída nos mistérios de outra vida.

A Tia Benedita, criada no catolicismo mais conservador – para onde teve o cuidado de guiar toda a família –, não tinha opinião sobre o assunto. O último mistério da vida não era a morte mas, como boa católica, a extrema unção, uma espécie de pacificação conseguida em vida e garantida aos vivos. Hoje vejo algumas vantagens nessa visão pouco melodramática e muito menos poética, mas não corro o risco de mencioná-las, porque a morte é um assunto dos vivos consigo mesmos. O tema, triste e soturno, desperta em mim lembranças inoportunas: Dona Ester, minha mãe, caminhando na ligeira arriba de uma praia vizinha de Moledo; o velho Doutor Homem, meu pai, folheando o seu ‘Telegraph’ desactualizado há semanas ou escolhendo um lenço para o bolso do casaco; eu próprio, assistindo a uma regata no rio, em Cerveira, em plena Páscoa de 1959. Nunca soube porquê e nunca me importei.

in Domingo - Correio da Manhã - 26 Junho 2011

domingo, junho 19, 2011

Não ter medo de envelhecer

A principal tarefa dos seres humanos com algum juízo é saber envelhecer. Infelizmente não há uma receita nem para o processo, que é longo, nem para o objectivo, que é vago. A generalidade das pessoas teme a velhice e o envelhecimento; têm razões para isso: envelhecer empresta-nos um número infindável de doenças, de problemas de memória e de desajustamentos em relação ao mundo. Mas há vantagens: um certo respeito pelos nossos achaques, pela nossa falta de paciência e, certamente, pela nossa idade, que não tem a ver com o envelhecimento propriamente dito. De facto, são coisas diferentes, como não deixo de fazer notar diante do espanto da minha sobrinha Maria Luísa, lembrando-lhe que nasci praticamente com trinta anos ou que, pelo menos, a minha adolescência e a primeira juventude não foram modelos de rebeldia a adoptar por um jovem contestatário na flor dos seus anos. Creio hoje que o fiz conscientemente e motivado por uma certa preguiça, ao ver como os rebeldes da minha juvenília, chegavam aos trinta e aos quarenta anos conformados com o peso das responsabilidades e com a ameaça do arrependimento pelos excessos cometidos.

Suponho que Dona Ester, minha mãe, via em mim os sinais dessa preguiça. Ela assistiu, de perto, ao primeiro desgosto de amor, que foi quase mortífero; o segundo, porém, contou com a sua energia e autoridade, enviando-me para os areais do Tamariz e afastando-me das rochas melancólicas de Leça e de Ofir, onde costumávamos passar umas semanas de Verão antes do período regulamentar em Ponte de Lima. Nessa altura, cancelar um casamento era um acto indigno e o preâmbulo de uma tragédia; por isso, como se as distrações do Tamariz não bastassem, encaminhou-me para Copacabana, certamente com a intenção de rejuvenescer-me e tornar-me um ser mais etéreo e risonho. Os meus meses cariocas, felizes e tépidos, devolveram-me à pátria com a sensação de estar a ser devolvido ao inferno – mas eu já tinha envelhecido em definitivo. Não havia nada a fazer. Limitei-me a preparar, no final dos anos quarenta, o que viria a ser o meu final de século. Envelheci com conforto e sem determinação, cheguei até aqui com a inestimável ajuda do meu médico de Viana e dos meus dois bibliotecários do Minho, além da presença de Dona Elaine, a governanta de Moledo.

Na semana passada, olhando a fotografia de um antigo namorado, Maria Luísa considerou, com alguma melancolia, “que ele tinha envelhecido bem”. Sorri à ideia. Ela queria dizer que alguma coisa se aproveitaria da vida.

in Domingo - Correio da Manhã - 19 Junho 2011

domingo, junho 12, 2011

Os antepassados sem juízo

Uma das tradições dos Homem (um conjunto notável e desorganizado de lendas, documentos, mentiras, evocações, folhas arrancadas aos nobiliários, cartas amarelecidas pelos séculos, além de hábitos de vaidade inclemente) sustenta que um dos nossos antepassados assistiu aos últimos momentos de el-Rei D. Sancho II em Toledo, na companhia de Gonçalo Anes de Portocarrero, um poeta que a península devia honrar.

Outra dessas tradições, evidentemente nunca confirmadas mas a que a Tia Benedita (a matriarca da família e garante do miguelismo de outrora) atribuiu sempre a matriz de uma verdade histórica insuspeita, foi a camaradagem que um vetusto avô do Minho manteve com São Teotónio, o padroeiro de Valença, peregrino a Jerusalém, padre Crúzio de Coimbra e conselheiro do nosso primeiro rei.

Não há sinais dessas ramificações na genealogia da pátria, mas em momentos de discussão, a academia dos Homem, reunida ao almoço dominical e pacificador de Moledo, não precisa de provas irrefutáveis nem de documentos vindos do Tombo. Basta-lhe a evidência familiar, que é sarcástica e desinteressada. Não há herói miguelista que não tenha conhecido um Homem nas faldas das serras ou nos vinhedos devastados do Minho, nem relicário do Velho Regime que não tenha uma história para contar. Esta inclinação da família pela história dos avôs próprios ou alheios tem a ver, diz a minha sobrinha Maria Luísa, com a necessidade de não pertencer aos “tempos modernos”. Pode ser. A Tia Benedita manteve até ao fim da vida inimigos invisíveis e imperecíveis, onde incluía o dr. Afonso Costa e os espectros dos liberais mais populares do Constitucionalismo, sobretudo os seus vates e demagogos. Pertencer aos “tempos modernos” foi, aliás, coisa que nunca nos mereceu grandes preocupações – embora Dona Elaine, a governanta do eremitério de Moledo, se lamente amargamente diante do velho frigorífico que há anos nos garante um sofrível refrigério.

A Dra. Celina, da biblioteca de Caminha, a quem contei estas pequenas desavenças com a nossa genealogia e os nossos electrodomésticos, afiançou-me que é assim em todo o lado. Ela vinha trazer-me uma cópia de um autor galego que menciona a Serra de Arga como um santuário do nosso Noroeste. Farto dos rochedos que guarda as Rias, e já insensível às lendas da velha Galiza obscura de Santiago e do Lugo, o historiador encantou-se com os pinhais amenos de Âncora e achou-lhes ar de nobreza antiga. Fez bem. Deve ter havido um antepassado dos Homem a confirmá-lo, nas suas ossadas do século, digamos, XIV. A Dra. Celina sorriu.

in Domingo - Correio da Manhã - 12 Junho 2011

domingo, junho 05, 2011

As dúvidas naturais sobre a ironia de um velho

A minha sobrinha Maria Luísa tem dúvidas sobre o seu voto nestas eleições. A eleitora do Bloco de Esquerda sempre achou que a liberalização do haxixe, o casamento entre cavalheiros ou o fim do sigilo bancário e as “aulas de educação sexual” eram motivos essenciais para definir o seu voto.

Acontece que, passada uma década de heróicos combates contra as classes médias e o os cavernícolas de todas as tendências, tudo isso são bandeiras já içadas nos terreiros da política. Tivemos algumas discussões e limitei-me a esmorecer depois de compreender que Marx e Engels tinha sido activistas do casamento homossexual. Várias vezes insisti que o casamento das outras pessoas não me interessava grandemente e, até, que me era indiferente – desde que me garantissem não ser convidado para a boda. Achei mesmo controverso que o casamento, a reprodução e a constituição de famílias –os horrores dos últimos dois séculos burgueses – se tivessem transformado em bandeiras da esquerda. Pessoalmente, cheguei a argumentar que toda a gente tinha direito à sua razoável dose de infelicidade e que isso devia ser constitucionalmente garantido.

Os meus sobrinhos foram o produto da educação liberal ministrada por famílias conservadoras. Desde a adolescência que promoveram cerimónias rituais para consumir haxixe entre os pinhais de Moledo. Eu mantive aquela natural e hipócrita neutralidade, na presunção de que o que eu ignoro não existe. Cansado de salazarismo, mantive-me de pés atrás em relação ao sigilo bancário, com a promessa de depositar as minhas economias num banco de Vigo mal o meu banco pensasse em afixar à porta o extracto das minhas poupanças.

Finalmente, acedi em que a vida está difícil para a esquerda. Pagar a dívida, não pagar a dívida – tudo se resume a isso hoje em dia. Os antepassados dos Homem contraíram dívidas astronómicas ao longo das várias gerações e mudaram várias vezes de vida até conseguirem pagá-las com a honra e com o trabalho. A minha sobrinha acha que o país não deve pagar a dívida, aceitando que as grandes despesas com auto-estradas e edifícios públicos são, afinal, um direito natural. Expliquei com insensatez que não se pode viver a vida independentemente das contas ao fim do mês. Maria Luísa debate-se com este problema na sua vida porque há clientes seus que não liquidam as suas facturas. Eu respondo, sem ironia, que a vida está difícil e que deve ser compreensiva ao ponto de “reestruturar a dívida”. Ela julga ver nesta proposta um sarcasmo direitista e eu não a desminto. Mas tem dúvidas, tem.

in Domingo - Correio da Manhã - 5 Junho 2011