domingo, março 25, 2012

Lições de Voltaire diante do Minho

O velho Doutor Homem, meu pai, tinha uma relação pacífica com a chamada “arte contemporânea”, limitando-se a não discutir o assunto, como se ele já estivesse catalogado no sótão da casa de família, entregue ao tempo e às conversas de adolescentes. A sua geração, educada e culta, ocupava-se muitas vezes de coisas inúteis mas, ciosa das tradições de liberalidade e de tolerância ora das burguesias, ora das velhas famílias do Porto, raramente discutia matéria de gosto. Serviam-se, antes, da ironia ou da arte da indiferença.

O velho Doutor Homem, meu pai, optava por ambas. Ele considerava que “as coisas modernas” deviam correr por sua conta e risco desde que lhe garantissem que não o incomodavam. Ele praticou este género ligeiro e morigerado de misantropia, cultivando o seu jardim como o personagem de Voltaire. A falar verdade, a leitura do ‘Tristram Shandy’, de Lawrence Sterne, mudou a sua vida e marcou uma curva na estrada: a partir daí, podiam os poetas encavalitar versos ou os romancistas falhar uma imagem – estava tudo previsto, como poderia dizer o ignorado compositor do Eclesiastes, conformado com os devaneios ou com os deslizes do género humano. Em momentos assim, de descrença, ou conformando-se com o desacerto das coisas, sentava-se na varanda do casarão de Ponte de Lima observando as trepadeiras de rosas de Sta. Teresinha que escondiam granitos antigos que tinham assistido à passagem de várias gerações desta família do Antigo Regime que nunca deixou de ser do Antigo Regime salvo para que a deixassem comer o cordeiro da Páscoa ou reunir-se à mesa no aniversário da Tia Benedita.

Amores, paixões, imprevistos, entusiasmos – tudo passou por ele como uma ventania ao crepúsculo de Afife, empurrando a areia da praia. A minha admiração por ele cresceu nos derradeiros anos da sua vida – havia nela uma inclinação discreta pelo anonimato e pelo amor às pequenas coisas. Foi assim que me tornei um botânico amador que, ao longo da vida, apenas sentiu inveja ou das árvores centenárias dos viscondes de Vilar d’Allen, ou das copas mais altas dos carvalhos de São Pedro de Arcos. O prazer do anonimato e a ironia diante das “coisas modernas” conciliaram-se para felicidade dos meus dias. A minha sobrinha Maria Luísa, sentada a uma mesa da esplanada da praça, em Caminha (onde vamos aos domingos), considerava que era preciso reaprender a viver no meio das crises. A coroa de nuvens que cobria o cume Santa Tecla, em frente à foz do Minho, sorriu amavelmente, animando-me.

in Domingo - Correio da Manhã - 25 Março 2012

domingo, março 18, 2012

As açucenas amarelas da Tia Henriqueta

A cozinha da Tia Henriqueta, como já contei uma vez aos leitores, era um emblema da arte gastronómica, uma espécie de reduto da cozinha familiar do velho Minho e de Vila Praia de Âncora, onde terminou os seus anos. Tinha um rosto vagamente melancólico e suave, uns olhos redondos que denunciavam um apetite burguês pela comida e pelos prazeres domésticos. A sua viuvez, demasiado jovem – aos trinta e quatro anos –, permitiu-lhe atravessar a idade madura com inteira liberdade, aproveitando o que de melhor tinha a vida antes de chegar a crise económica, o desvario das finanças e a malvadez do mundo. O seu arroz de pato continua hoje a ser um mistério; cada um dos meus irmãos (as minhas duas irmãs, ainda jovens, têm dedicado os últimos anos à prática de dietas cíclicas e creio que dolorosas) recorda cada grão e cada garfada. Além disso havia ainda o riso da Tia Henriqueta, sobrepondo-se à memória de uma família vagamente dedicada a viver no anonimato, visitando-se, emprestando livros das suas bibliotecas, venerando as fotografias dos antepassados e discutindo se o general Lemos podia – ou não – ter assinado os documentos de Evoramonte. Todos eram unânimes nesse particular: não devia ter assinado. Mas era um resto de heroísmo à distância, desalentado e birrento. Nas outras matérias não havia unanimidade – uns optavam pelo arroz de pato, outros pelo cabrito no forno de lenha, outros pelos rojões, e uma minoria esclarecida e hedonista pelos seus mexilhões passados em metade de água doce e metade de água do mar, temperados de azeite, salsa, alho e pimentos de vinagre.

A Tia Henriqueta morreu suavemente e sem pecados capitais, generosa, extinguindo-se depois de uma pneumonia. Estávamos na Primavera de 1967, e o funeral partiu para Ponte de Lima ao fim de uma manhã enevoada que terminaria numa tarde ensolarada, quente, misericordiosa. Murmurava-se que, depois de viúva, apenas alimentou duas paixões: uma delas era a sua cozinha, a outra nunca era citada em família por uma espécie de pudor benigno e envergonhado. Tratava-se de um certo pudor, respeitoso e romântico. A sua grande amizade por uma antiga companheira de juventude nunca mereceu qualquer comentário na família, que se recusava a escandalizar-se por tão pouco. O aroma cálido das açucenas amarelas e das magnólias de Vila Praia de Âncora ainda hoje transporta consigo essa recordação de uma mulher delicada e silenciosa. Tocava piano, mas muito mal. Cozinhava maravilhosamente. Parecia uma personagem de Dona Agustina, embevecida diante do mundo.

in Domingo - Correio da Manhã - 18 Março 2012

domingo, março 11, 2012

A companhia geral dos telefones

Dona Elaine, a governanta do eremitério de Moledo, é do tempo em que o telefone era um luxo. Uma chamada para Viana ou para o Porto durava entre dois e três minutos e, quando lhe calhava ter de ligar para os familiares do Brasil, no Rio ou em Niterói, um minuto bastava para o essencial, rematando com um “não gastes mais dinheiro, adeus, adeus”. Escreviam-se cartas, treinando a ortografia e alguma sintaxe – e, para as notícias dramáticas ou, pelo contrário, festivas, havia os telegramas. A morfologia e sintaxe dos telegramas comovem-me até hoje, por terem dado origem a mensagens tão originais que se escapava o verdadeiro sentido da notícia. Já quanto à epistolografia, o único género literário experimentado pela família (sobretudo pelo meu avô, que se correspondia diariamente com proprietários das quintas do Douro, seus clientes de várias décadas), deu origem a monumentos biográficos e vale mais do que vários tratados de sociologia.

O velho Doutor Homem, meu pai, não assistiu ao advento do telemóvel. Usava com parcimónia o telefone e não creio que fosse por recear a factura mensal da companhia; tinha horror, isso sim, à campainha do aparelho, que considerava uma intromissão exagerada. À hora do jantar desligava o telefone; e defendia que depois das dez da noite era indecoroso estar a incomodar alguém ou sujeitar-se ao incómodo de receber chamadas. Parte da família considerava isto uma prova de misantropia ou de sobranceria, ignorando que se tratava, apenas, de defender o direito a uma certa indiferença, além da tranquilidade doméstica.

Durante o Verão, quando a casa de Moledo se assemelha a um quartel-general de uma campanha no Norte de África (ocupada por sobrinhos, por amigos dos sobrinhos e por sobrinhos-netos), verifico que as novas gerações não sucumbem ao excesso de comunicação. Ligados sem descanso ao outro lado do mundo, ao outro lado do Minho, ao outro lado do país ou apenas ao outro lado da praia, comunicam permanentemente e ignoram como era um mundo onde as pessoas se encontravam, chegavam a horas e conversavam sem ser através do telefone e sem ser constantemente. A minha sobrinha Maria Luísa desliga o telemóvel aos sábados, mas não resiste a – ao fim do dia – “ir ver as mensagens”, como se lhe pudesse ter escapado uma parte da vida depois de umas horas de recolhimento. Compreendo-a, no fundo: num mundo que não tem pausas, ela recusa-se a admitir que está ausente.

Dona Elaine, essa, troca mensagens com as amigas e não sai para a farmácia sem levar o telemóvel, não vá dar-se o caso de o Papa lhe ligar entretanto.

in Domingo - Correio da Manhã - 11 Março 2012

domingo, março 04, 2012

Sobre o clima e outras anomalias

Já contei aos leitores benevolentes que o Dr. Anthímio de Azevedo foi, nos anos derradeiros da vida do velho Doutor Homem, meu pai, uma espécie de autoridade doméstica cuja aparição televisiva era seguida com reverência e regularidade. Podia perder-se o telejornal, mas a informação meteorológica era uma espécie de celebração para crentes. Frases mágicas como “neblinas matinais a norte do Cabo Carvoeiro” ou “precipitação a norte do sistema Montejunto-Estrela” eram perseguidas como revelações sobre o estado da Pátria e o andamento das coisas da família, intrinsecamente associadas porque tinham a ver com a escolha da roupa para o dia seguinte, a preparação dos espíritos para as embirrações do cosmos e uma secretíssima aposta de todos nós acerca da fiabilidade das previsões meteorológicas.

Dona Elaine, a governanta do eremitério de Moledo, perpetuou esses hábitos e parece querer julgar que a imprevisibilidade dos elementos é gerida pelos meteorólogos mais do que pelo complexo sistema de altas e baixas pressões. Olhando pela janela da cozinha enquanto tomo o pequeno-almoço de torradas e café de cevada (além da medicação matinal), a antiga emigrante do Brasil tenta perceber se se aproximam nuvens que acalmem a seca de Inverno. Quando insiste que vem aí o fim do mundo, tento pacificar a sua veia catastrofista prometendo-lhe chuva durante o resto do mês, mas falta-me a autoridade do Dr. Anthímio de Azevedo. Resignado, lembro a mim próprio que tenho saudades da chuva como do tempo em que Março a interrompia com a floração dos hibiscos e com o vendaval de mimosas (Acacia dealbata) nas estradas em redor de Viana.

Entretanto, a Dra. Teresa, a médica de Venade (sobre as colinas de Caminha), mandou-me fotografias das suas magnólias em botão. Respondi-lhe que o assunto merecia versos mais do que a admiração cirúrgica do botânico; e que eu não estava à altura da missão. Sendo isto verdade, sinto-me como Dona Elaine perscrutando as nuvens sobre Moledo, aguardando as primeiras bátegas de chuva a cair em São Pedro de Arcos; aí, não há lugar para as belas magnólias de Venade, e a minha memória leva-me a uma espécie de paraíso onde o silêncio no alto das montanhas se perdeu já depois de todos estes anos. Os meus sobrinhos continuam a levar lá os seus filhos e as suas namoradas, em peregrinação sentimental e, creio, em nome do Tio Alberto, que considerava aquela paisagem uma dádiva dos céus. Ele sabia, não se sabe por que vias, que a meteorologia é uma entidade anómala que cresce no coração.

in Domingo - Correio da Manhã - 4 Março 2012