domingo, setembro 23, 2012

Lições básicas de economia política


O velho Doutor Homem, meu pai, passou a maior parte da sua vida a tratar de segredos de direito bancário, uma especialidade pouco romântica, pouco popular e nada literária. Eu, seu filho mais velho, segui as suas pisadas por preguiça – na época, o sistema bancário tinha alguma coisa do século XIX, e os seus escritórios e dependências albergavam retratos de gente ilustre que o tinha inaugurado.

O que acontece, pelas minhas memórias – e pelas que roubei ao velho Doutor Homem, meu pai –, é que desde meados do século XIX Portugal pouco mudou. Tentei explicar à minha sobrinha Maria Luísa que devia ler Oliveira Martins com o argumento de que o seu ‘Portugal Contemporâneo’ era uma novidade editorial de fôlego. Ela compreendeu a ironia: o país já não era uma terra de velhos e austeros comerciantes ou prestamistas, mas continuava a ser administrado pelos herdeiros do Constitucionalismo que ganharam dinheiro com as obras públicas de Fontes Pereira de Melo, que ganharam dinheiro com o comércio de víveres e de influência durante a República, que ganharam dinheiro com o regime do dr. Salazar e que, finalmente, retomaram os seus direitos históricos com a democracia de hoje. Esta visão, simples e injusta, merece-lhe aplauso. Por instantes viu-me com um votante potencial do Bloco de Esquerda, preparado para aclamar o casamento entre cavalheiros para fumar haxixe nas dunas ao fundo dos pinhais de Moledo.
Remediado e manhoso, tanto como ignorante e vaidoso, o Portugal do Constitucionalismo prolongou-se até hoje. A Tia Benedita, a matriarca miguelista da família, que não estudou economia nem chegou a conhecer o FMI, percebeu que ao velho regime dos seus avós se tinha sucedido um casamento de conveniência entre os negócios do Estado e os dos prestamistas e negociantes, o que garantiria uma alegre corrupção colectiva – mas sem alma, sem espírito e sem travão a emprestar-lhe alguma decência.

Os Homem de várias gerações compreenderam esta arquitectura e viveram nas suas margens, dedicados a sobreviver e a cuidar do colesterol alto, mal ele foi inventado. Pertenciam a outro mundo. Ganhavam a vida, guardavam os retratos e mantiveram reunidas as peças de Companhia da Índias no velho casarão de Ponte de Lima. Mas não confiavam. Maria Luísa, a esquerdista da família, vê nisto um sinal de honradez delicada. Não é bem isso; é, muito mais, o pessimismo ardente de uma família de derrotados que vê o seu país entregue a comerciantes dos sertões. Não é tão nobre, evidentemente, mas serve para dizer que já contávamos com esta gente.

in Domingo - Correio da Manhã - 23 Setembro 2012