domingo, abril 29, 2012

Nunca acreditámos que Portugal mudou


O velho Doutor Homem, meu pai, não conheceu o Dr. Armindo Monteiro, mas pressinto que comungavam da mesma visão em relação à posição de Portugal durante a II Guerra. Foi mais feliz o advogado portuense do que o embaixador em Londres: o segundo foi afastado, o primeiro seguiu o seu caminho, confirmando que o dr. Salazar era um pontífice beirão a administrar um país pobre, enfadonho e corrompido. Ele achava que o Dr. Salazar tratava o país como um filho de tenra idade que necessita de amparo e protecção, razão porque a pátria definhava, entregue aos cuidados do antigo salvador, que tanto administrava senhas de racionamento durante a Guerra, como se julgava guardião dos restos mortais de el-rei D. Sancho, o Pio, ou – num arroubo – declarava que um país esfomeado (como era o nosso) estava disposto a morrer para salvar Nagar Aveli e Goa.

O anti-salazarismo do velho Doutor Homem, meu pai, era elegante e fátuo, como se precisasse do dr. Salazar para animar o seu sentido de humor, que era assassino e cheio de crueldade — ele dizia que o professor de Coimbra calçava botins comprados “na Saville Row de Santa Comba Dão”, o que serve para dar uma ideia do seu dandismo incurável. Depois do desembar­que na Normandia, ele alimentou a esperança de que o mundo se interessasse por Portugal, o que seria um absurdo. A vida continuou com poucas alterações visíveis, o que foi outro absurdo, e a família continuou nos anos quarenta, como tinha feito antes e faria depois, a passar férias em Ponte de Lima, rodeada de velharias, dos antepassados e da Tia Benedita, a única de nós que acreditava que Portugal tinha sido poupado aos bombardeamentos estrangeiros por causa das orações pelo ditador. “O mal”, dizia a velha senhora, “é que não o entendem.”

O velho Doutor Homem, meu pai, ria desta profissão de fé. Ele era um estrangeirado que, com vinte e dois anos teve a graça de umas férias inglesas. Essas “férias inglesas”, que ficaram famosas depois, foram a consequência de um velho distúrbio familiar, segundo o qual em Portugal não se aprende grande coisa. Bastava a um Homem cruzar a imaginária linha de fronteira que separava a verdura de Valença da desolação de Tuy, ou atravessar as primeiras montanhas das Astúrias (de comboio), a caminho de Paris, para se transformar num cidadão do mundo. Anos mais tarde, o meu pai confidenciou-me que isso se devia à teimosia dos Homem em aceitar que a Pátria tinha mudado consideravelmente, mais do que podia a compreensão da velha família espalhada pelo Porto, por Ponte de Lima e pelo arvoredo dos Arcos.

in Domingo - Correio da Manhã - 29 Abril 2012

domingo, abril 22, 2012

O mês de Abril que não regressa


Houve um dia, creio que se tratava de uma tarde Abril, fria como as deste ano, em que percebi que tinha envelhecido sem remissão. O velho Doutor Homem, meu pai, acabara de regressar de um visita ao médico e anunciou que “precisava de fazer exames”, eufemismo para explicar que sofria de um mal crónico que haveria de o acompanhar até 1974. A doença do meu pai ajudou-o a sobreviver; Dona Ester, minha mãe, morreu antes; o seu médico, companheiro do bridge semanal, morreu antes. Ele lutou com o mal e enganou-o enquanto pôde – mas eu envelheci nesse dia e percebi que tinha chegado a um confronto decisivo com a minha idade.

Na família, por graça e por grande amor à sinceridade, sempre fui tratado como um caso especial – eu, o mais velho dos cinco irmãos, teria envelhecido demasiado cedo: vestia fato aos sábados, os meus sapatos tiveram sempre atacador, o celibato era visto como a antecâmara de uma vocação de bibliotecário discreto, mesmo a dedicação à árvore genealógica da família evidenciava um envelhecimento prematuro. Aceitei este retrato por preguiça e comodismo; para o desmentir eram necessárias explicações que eu não queria dar e que, ao longo da minha vida, guardei como um triunfo sobre a tagarelice. Paixões, devaneios de meia idade, viagens discretas, certas leituras, cartas trocadas ou nunca respondidas – tudo isso pertence à memória de cada um e, sobretudo, à sua radiografia mais íntima.

A doença do meu pai relembrou-me, cedo demais, os deveres familiares e a iminência do fim. Agora, que é Abril, relembro o poeta – “Abril é o mês mais cruel” – e relembro os livros desse tempo de iniciação ao sofrimento. Houve um tempo, depois de ter chegado à idade em que o pudor se misturava com a decência (para deixar de ser vergonha apenas), em que as lágrimas eram apenas um sinal de tristeza, de melancolia e, até, de sofrimento. Mas tanto o sofrimento como a tristeza passaram a ser um espectáculo oferecido em público, para uma audiência de espectadores convertidos à sensibilidade do choroso. Ora, as lágrimas são mais do que um sinal; elas são o fenómeno em si. Durante anos, assisti, não sem alguma indignação, à exigência de que os homens – seres graníticos ou, pelo menos, venais – chorassem com abundância para provar a sua suposta humanidade. Minha mãe, Dona Ester, não concordava. Ela achava que as lágrimas eram parágrafos num romance popular, destinado a alimentar almas que não deixavam sombra. Entretanto, envelhece-se sem remissão. E sem regresso.

in Domingo - Correio da Manhã - 22 Abril 2012

domingo, abril 15, 2012

Sobre todas as coisas, o liquidâmbar

O velho Doutor Homem, meu pai, prezava os jardins do Porto como uma espécie de reduto contra a ventania do tempo. Das janelas do seu escritório avistava, de um lado a torre cinzenta dos Clérigos e, do outro, a neblina da cidade. Os liquidâmbares ainda não faziam parte da sua paisagem, tirando as visitas ao cemitério britânico, onde duas gigantescas árvores da espécie tanto prodigalizavam sombra no Estio como, depois, recato e colorido outonal. De Ponte de Lima trouxera para sempre a folhagem das tílias e dos amieiros, que considerava uma árvore boa para decorar as margens dos rios, mais do que para ser observada com admiração – e, tirando os pinheiros das serras em redor do velho casarão miguelista, os seus conhecimentos botânicos nunca foram além do essencial.

As flores dos liquidâmbares sempre me pareceram inúteis durante a minha juventude. Sem a exuberância das japoneiras, a doçura pastel das magnólias, o perfume ou o colorido das suas primas, limitavam-se a ser uma promessa verdejante que garantia a propagação da espécie. Na casa de Moledo há três, mais ou menos limitados pela maresia corrente, e que contrastam com a folhagem perene em redor. O Outono dá-lhes vida, a Primavera anuncia o seu esplendor – são uma árvore cuja beleza começa no nome, exótico e próprio para embelezar um roteiro instrutivo sobre a floresta local.

Um dos meus irmãos anunciou-me que, por causa de um muro a ameaçar ruína, um deles terá de ser rasurado no pátio de Ponte de Lima, o mesmo de onde o velho Doutor Homem, meu pai, mandava que os seus netos arrancassem gladíolos às escondidas (a dez tostões por exemplar). Manifestei-me contra a ideia; um liquidâmbar está destinado a crescer e a ser admirado; os portugueses detestam as árvores porque estas ocupam espaço que poderia ser ocupado por cimento ou por edifícios de arquitectos muito cotados; uma árvore centenária é sempre um sinal que honra uma família conservadora. Nenhum dos meus argumentos convenceu o grémio familiar. A minha irmã mais nova murmurou, ainda, que as árvores se substituem umas às outras porque são todas muito parecidas.

O meu estatuto de ancião dá-me voto de qualidade, mas não sei por quanto tempo. Por mim arrasaria o muro para que o liquidâmbar pudesse emprestar a sua nobreza melancólica às gerações vindouras. Mas não sei. Tentei interessar os meus sobrinhos pela matéria, sugerindo mostrar-lhes o herbário da família, um álbum de recordações fora de moda. Disseram que sim. Não sabem distinguir um pinheiro de uma abóbora.

in Domingo - Correio da Manhã - 15 Abril 2012

domingo, abril 08, 2012

Os livros que andam nas nuvens

O meu editor, o Dr. Boavida, telefonou na semana passada. Reconheci-lhe a voz tranquila de um homem dedicado a folhear livros e a evitar as sobras dos meus.

Sempre considerei estas crónicas como um reduto da vaidade extrema a que pode chegar um velho minhoto quase contemporâneo do Titanic e que, em vez de se dedicar a cuidar, em exclusivo, dos hibiscos, das begónias e das japoneiras que ainda enfeitam o jardim da casa de Moledo, enche a velha Parker com a tinta que há anos vem da papelaria de Caminha – e tenta gastá-la. A caneta, uma velharia bondosa, herdei-a do velho Doutor Homem, meu pai. É a mesma com que assinou o seu assento de casamento com Dona Ester, minha mãe. Conseguiu sobreviver a perdas e danos ao longo de um século e está prometida à minha sobrinha Maria Luísa, que ultimamente pretende obrigar os seus dois filhos a escrever em cadernos de linha estreita para melhorar a ortografia. Os cadernos de linha estreita são também uma velharia; ela descobriu uma caixa numa velha mercearia de Amares e trouxe-a para relembrar à sua descendência que já houve um tempo em que se escrevia com ambas as mãos (uma para segurar na caneta, outra para alisar a folha de papel) e não apenas com a ponta dos dedos, num teclado.

O Dr. Boavida é desse tempo e, se bem que a sua letra não revele um artista da caligrafia, pelo menos entende-se que escreve como um português que sabe existirem sujeito, predicado e complemento. Desta vez, depois de eu o ter esclarecido sobre o ritmo cardíaco e as prescrições que a Dra. Teresa, a médica de Venade, impõe à minha dieta, o Dr. Boavida informou-me que um dos meus livros “vai sair em ebook”. E aí estava ele, ao telefone, editor apreensivo, perguntando se eu estava de acordo.
A minha sobrinha Maria Luísa, no intervalo de uma tarde de sábado, tinha já esclarecido o assunto. Um ‘ebook’ era, pois, um ‘livro electrónico’ que se lê em quase todo o lado, tanto no computador como no telemóvel. A novidade não me surpreendeu. Desde o tempo da obrigatoriedade do óleo de fígado de bacalhau até à democratização da marijuana houve um largo sismo nas nossas vidas. “E isso não faz mal aos livros?”, perguntei eu. “Não me parece, alguns têm sobrevivido”, riu o Dr. Boavida, com horror à minha ignorância.

Pois que seja um ‘ebook’. O assunto ultrapassa-me. O meu editor, generoso e moderno, ainda me informou que, daqui em diante, enfim, lá para Maio, o livro ia estar ‘disponível na nuvem’. Trocámos saudações e recusei saber mais sobre o assunto. Com esta idade, acredito que o saber ocupa lugar. No jardim, limitei-me a olhar para o céu, folheando-o.

in Domingo - Correio da Manhã - 7 Abril 2012

domingo, abril 01, 2012

Elogio da paisagem e das nuvens, claro

A passagem mais enigmática de ‘A Cidade e as Serras’, de Eça de Queiroz, é, naturalmente, a que descreve a viagem de Jacinto e Zé Fernandes desde a estação junto do Douro até aos domínios do príncipe da Grã-Ventura em Tormes. O velho Doutor Homem, meu pai, considerava-a uma das pérolas da nossa Língua; a minha sobrinha Maria Luísa, quando no zénite da sua pós-adolescência, achava-a terrivelmente maçadora – mas, mais tarde, apaixonou-se por esse trecho e via nele todo um programa literário. Não era. De facto, esses parágrafos, calcorreando as colinas sumptuosas da imaginação de Eça, mais do que da nossa geografia e botânica, desenhavam uma paisagem que hoje já não existe. Nessa altura, todos os arvoredos eram “luxuriantes”, e todas as planícies indecorosamente verdes. Com o tempo, a paisagem intocada da literatura encheu-se de devaneios arquitectónicos e de cargas de betão que transportaram o progresso para os lugarejos mais remotos do Soajo, do Larouco ou do Douro.

Isso só acontecia na literatura, em geral, porque os portugueses nunca foram muito ligados às suas paisagens. Que um comboio ou uma estrada atravesse os campos de uma província ou os pinhais de uma colina, é matéria do “progresso inevitável” e raramente lhes forneceu assunto de discussão, porque árvores “é o que mais há” e as paisagens “são boas para os poetas”. O próprio Eça, num repente de ironia, cita o poeta Alencar, de ‘Os Maias’, num soneto sintrense, que termina com o célebre verso “Ao lado o burro, pensativo, pasta...” O resto era, vá lá, paisagem, cerros povoados, córregos que atravessam as serras e pouco mais. Ou seja, inutilidade dispensável, tal como as ruínas que as décadas e os séculos nos legaram.

Isto está relacionado, naturalmente, com a tendência pouco contemplativa dos portugueses de hoje. Não há aldeia que não tenha uma construção opulenta a lembrar que a epopeia da arquitectura moderna e do “progresso cultural” também já ali chegou, indesmentível e inadiável – enquanto, ao lado, se acumulam ruínas e se enfeitam paisagens com despojos da vida moderna.

Ao chegar à idade em que as coisas são mais do que relativas e consideramos que a passagem do tempo tudo ilumina, aprecio cada vez mais a paisagem intocada, as nuvens que a protegem, e a capacidade de amar as ruínas do meu país. Um dia destes direi à presidente da Câmara de Caminha que estarei disposto a votar por ela, se me garantir que não ergue uma única obra pública. Por aqui se vê até onde vai a deliquescência de um conservador.

in Domingo - Correio da Manhã - 1 Abril 2012